O lado mais tenro, macio e saboroso dos Carne Doce é um autêntico filé mignon. Salma e Mac servem-nos a refeição perfeita com elevado teor de beleza e muito rica em calorias poéticas.
A nossa bem conhecida banda de Goiânia – Carne Doce – resolveu fazer um pequeno desvio, focando-se no essencial: as letras, as vozes e as cordas de uma guitarra acústica (ou violão, como se diz lá no seu Brasil natal). Ou melhor, Salma Jô e Macloys Aquino gravaram um EP acústico indo buscar, como matéria-prima, quatro canções de três álbuns anteriores, somando-lhes outras três faixas (inéditas) a este novíssimo projeto, Salma e Mac. Em tempo de clausura, como é este em que vivemos, a razão provável da feitura do disco terá sido dar corpo e voz às coisas mais simples, mais depuradas, mais virgens: desconstruir para mostrar a arquitetura inicial da criação artística, poética, musical. Talvez tenha sido essa a ideia por detrás desta pequena fatia de som que o casal Carne Doce pretendeu mostrar ao mundo, que de tão grande, complexo e extremado, por vezes carece de um espaço e de um tempo para a simplicidade e o prazer das coisas essenciais da existência. Salma e Mac é um disco caseiro. Um disco para se escutar com o coração.
São sete, as composições que podemos escutar em Salma e Mac. As já anteriormente conhecidas (“Eu Te Odeio”, “Canção de Amor”, “Passarin” e “Amiga”) parecem, afinal, novas, tal a nudez com que se apresentam. Não é que estejam irreconhecíveis, longe disso, mas mais parecem crianças brincado despidas ao calor do verão, já não com as roupagens adultas com que se deram a conhecer nos álbuns Carne Doce (2014), Princesa (2016) e Interior (2020). Quanto às outras, as inéditas “Seu Olhar”, “Alegria Triste” e “Alguém Pra Esquecer”, elas não destoam do clima em que se baseia todo o trabalho, antes acrescentam o que só a novidade pode trazer: o prazer do inesperado! E assim sendo, como será possível não ficarmos rendidos ao que Salma nos vai segredando ao ouvido sobre “as besteiras que você sabe ler”? Este verso, retirado do tema de abertura (“Seu Olhar”), talvez sintetize o lado caseiro e intimista de todo o disco. Ele poderá revelar, se soubermos amplificar o seu mais restrito significado, o lado romântico, poético e fantasioso das coisas comuns, das coisas rotineiras, do dia-a-dia de quem vive entregando ao outro aquilo que é genuinamente seu. Salma e Mac, mais do que qualquer outra coisa, será sempre um disco de revelações íntimas, um disco de entrega e partilha de sentimentos, um conjunto de canções que parecem mostrar as coisas de sempre como se filtradas pelo espanto inaugural da primeira vez. É isso que fica, é isso que ganha espaço e se acomoda no interior de quem ouve o disco com a atenção que merece. “Seu Olhar” é uma introdução, de tão curta, ao que vem a seguir. Bonita e simples, cristalina pela voz e serena pelo som das cordas. “Alegria Triste” tem jeito de bossa-nova, mas engana-se quem a cataloga simplesmente assim. É uma canção que aponta à saudade (“agora eu vivo apenas de lembrar”) que se vai desenrolando, sem pressas, e que conta com a presença da voz de Mac (um pouco mais atrás da de Salma, mas bem nítida), como se fosse ela a dar corpo ao que se memoriza nos versos da canção. “Alguém Pra Esquecer” segue um pouco o caminho rítmico da anterior (na batida do violão, sobretudo) e tem uma das letras mais interessantes do disco. Salma Jô sabe o que escreve, mas mostra-se ainda mais capaz na forma como deixa no ar tantas outras ideias. A isso, ao que o poema não diz, podemos chamar, sem receios, poesia.
Salma e Mac é uma dádiva. Mais uma que a dupla nos oferece. Está apenas disponível em formato digital, o que é uma pena. O formato físico objetivaria os sentimentos que nele se encontram, como se um lado tátil pudesse traduzir em definitivo a consciência íntima que habita a alma destas canções, para que pudéssemos ter também nas mãos aquilo que nos vai preenchendo o coração.