Como é que se celebram dez anos de coletâneas de músicas escritas do avesso a saber a verões de infância perdidos senão em álbuns de família? Com mais uma coletânea de músicas escritas do avesso a saber a verões de infância perdidos senão em álbuns de família, claro está. E é com a frescura e a leveza inocente de pés descalços sobre a areia de sempre que os Animal Collective nos entregam nas mãos o seu mais recente disco – Painting With.
Sucedendo-se ao explosivo e difícil Centipede Hz (2012), Painting With surge-nos como uma lufada de ar fresco, graças à sua abordagem mais direta, imediata, permitindo saborear as doces melodias do quarteto – neste disco, reduzido a trio: Noah Lennox (Panda Bear), Dave Portner (Avey Tare) e Brian Weitz (Geologist) – de olhos fechados e ouvidos abertos para o que é talvez o trabalho mais pop que alguma vez produziram. Aqui, acabaram-se as introduções vagarosas, a reverberação intensa, as demoras. Não é por nada que Noah Lennox se tenha referido ao novo trabalho como o seu “disco de Ramones”. As músicas ficam o tempo que precisam de ficar e deixam quem as ouve com água na boca por mais: a quantidade de faixas que obriga ouvir outra vez, outra vez e outra vez é imensa. É impossível matar a sede de mais melodias inquietas, baixos e sintetizadores que nos levam para uma pista de dança extraterrestre, coros angelicais que aquecem o coração e letras que dão vontade de perder uma noite a decorá-las para as berrarmos ao desafino.
O disco abre com a faixa que talvez mais repetições exige, a solarenga “Floridada” – que se desfaz aos novelos perante os nossos ouvidos deliciados, transbordando uma energia que sabe ao frenesim de agosto, a pingar harmonias doces e cujo ritmo saltitante nos percorre o corpo todo. Parece acabar antes de querermos que assim seja, levando-nos a correr para a ouvir novamente vezes e vezes sem conta. É também dona de um refrão que se recusa a abandonar a memória de quem a ouve nem que seja só uma vez e exibe uma letra irrequieta e cheia de engenho que apenas poderia ter saído da cabeça complicada e maravilhosa de Portner: “A dancer from Ghana / smiling in Tijuana / I Frankenstein java with touches of Prada”.
Mas apesar de todo o saber pop de quem a infância certamente caminhou lado a lado com discos de Beach Boys, não deve ser mal interpretado: continuam os mesmos Animal Collective, desafiando o ouvinte e lançando-lhe deliciosas armadilhas. Assim que nos habituamos ao balançar da bateria e aos acordes dos sintetizadores e começamos a bater o pé, distraídos, lançam-nos uma rasteira daquelas que só eles sabem lançar, apanhando-nos de surpresa e virando a melodia ao contrário. O seu apetite para o surreal e extraterrestre nunca é mais evidente do que em faixas como “Lying In The Grass” – na qual nos conduzem por uma excursão futurística repleta de coros diluídos e sintetizadores trémulos, faixa que explode e cresce na segunda metade de uma forma avassaladora, ou a bem-disposta e excêntrica “Bagels in Kiev”, que, ao chegar ao final, se prende no ouvido como nunca imaginámos que o fizesse quando a inicialmente estranhámos.
No entanto, talvez o momento mais alto de todo o disco seja a penúltima faixa, “Golden Gal”. Com um baixo que pesa e uma melodia leve de uma doçura que estraga os dentes, é um verdadeiro raio de sol que se segue a faixas mais frias como “Spilling Guts” ou “Summing The Wretch”. Que aquece, queima. É, sem dúvida, um dos momentos áureos da coletiva até aos dias de hoje: nunca, ou quase nunca, foi a pontaria de Lennox/Portner tão certeira no que toca a tecer uma melodia a transbordar tanto pop puro e duro, pop de pastilha elástica, que faz dançar até as papilas gustativas, cheia de coros que pedem a que eles nos juntemos assim que, à primeira escuta, a canção se prende aos nossos ossos se recusa a abandonar. Perfeita.
Ao longo dos anos, as comparações com os Beach Boys assombraram os Animal Collective – eram aqueles coros imaculados, aquelas melodias cheias de cor, as canções cheias de vida, as letras a puxar, mesmo sem querer, pela praia, pelo sol, pelo fim da escola (e também, toda a droga…). Comparação por vezes mal-amada, que levou a episódios como a descrição da banda como “dois discos dos Beach Boys a tocar ao mesmo tempo” pelo crítico Thorin Klosowski, da publicação Westword. No entanto, após ouvir Painting With, podemos afirmar que, se Brian Wilson e companhia tivessem nascido e crescido em Marte, seria este o disco com o qual chegariam à terra. Vozes que nadam em conjunto, melodias cheias de sol, psicadelismo irrequieto e sempre bem-vindo. E que quando se entranha, entranha-se a sério.