
Como é que é a recepção do vosso trabalho em Portugal, em relação a Berlim?
PR: É muito diferente porque o contexto muda completamente. No princípio foi difícil apresentarmos as músicas. Estávamos habituados a falar delas e a dar um contexto – as pessoas não sabiam o que era uma «Maria Faia». Chegamos a Portugal e já não precisamos de falar nisso, todos já sabem. É diferente porque as pessoas já têm uma ideia na cabeça do que é a música tradicional portuguesa e depois confrontamo-las com outras ideias.
RA: Mexemos no imaginário delas e algumas não deixam, não querem que isso aconteça. Não querem perder o conforto. Estão-nos a ver e de repente pusemo-las a pensar. Elas não querem isso: querem estar confortáveis, ouvir música fácil. Agora pensar, porque cantámos a «Machadinha» de uma maneira diferente e estamos a evocar um pensamento sobre a cultura portuguesa?
PR: Há concertos e concertos, espaços e espaços. Lembro-me que, quando chegámos, fomos tocar a uma Fnac no Algarve. Correu muito mal, não estavam para aquilo. Queriam divertir-se e tiveram tensão. Estavam desconfortáveis. Mas depois também fomos à D’Bandada, no Porto, tocar pra muita gente, e apresentámos o «Acordai». Foi a primeira vez que, a meio da música, as pessoas começaram a aplaudir. Foi a primeira vez que nos emocionámos mais, em palco, por conseguir passar essa força.
Também se andava a cantar muito o «Acordai»…
PR: Exacto, foi muito bonito.
RA: Se tentávamos ter um sentido de utilidade em Berlim, quando cantamos um «Acordai» perante tantas pessoas e nos aplaudem a meio da música ou vêm ter connosco depois de um concerto e nos dizem «Força, continua», então continuamos. Já não é por nossa causa, é pelas pessoas e pela confiança que depositaram em nós.
PR: Claro que Lavoisier continua por esta força toda, as pessoas que vêm ter connosco e nos pedem pra não parar.
RA: Mas é preciso tocar lá fora, ter um público completamente alheio da nossa cultura. Estar minimamente à espera do que vai receber e no fim estarem muito agradecidos, sem anteriormente fazerem ideia do que era Portugal.
PR: O bonito que é não perceberem uma única palavra e a emoção passar. É mágico.
RA: Daí que nos tenhamos mantido muito à margem da poesia portuguesa. Cá em Portugal ouvíamos muitos artistas a cantar que debitavam muita letra. Vamos mais pela narrativa musical do que pela letra.
Houve algum critério na escolha das músicas?
RA: Vamos pôr a coisa bonita: não fomos nós que escolhemos as músicas, foram elas que nos escolheram a nós. E é verdade. Fizemos uma «Machadinha» porque estávamos em Berlim, cantámos «ah ah ah minha machadinha», depois brincámos com uma harmonia e de repente pensámos: «e se fizéssemos isto?».
PR: Uma das primeiras músicas que trabalhámos foi a «Senhora do Almortão», a da Catarina Chitas. Aquilo bateu tão forte, arrepiou tanto a espinha que tivemos de pegar naquilo e fazer alguma coisa. Nesse sentido, não houve um critério, foi mesmo porque nos tocou. Quase chorar a ouvir a Catarina Chitas a cantar e saber que foi uma pessoa que não estudou, que não sabia ler nem escrever.
RA: Ela estava assustadíssima, quase com um bocadinho de medo, constrangida, a olhar para a câmara, mas a verdade, a pureza que saía dali, era incrível.
PR: O bonito de ver a necessidade de cantar das pessoas.
RA: E responsabilidade, porque elas ensaiavam. Era uma coisa feita diariamente e havia critério. Juntavam-se e umas faziam a arriba acima, outras a arriba abaixo. E depois temos as polifonias portuguesas completamente complexas. São muito típicas nossas mas elas não lhe davam um nome. «Tu fazes a terceira menor do intervalo da tónica de dó maior, vamos fazer aqui uma dissonância» – elas não faziam isto.
PR: O Lopes-Graça, para transcrever algumas coisas, deve ter tido imensa dificuldade. Há coisas super complexas, de matar o miolo, que não fazem sentido nenhum a nível académico.
RA: «Como é que eu vou escrever isto? Posso escrever, mas não é aquilo que vai sair.»
O que é que é mais intenso: o palco ou o estúdio?
PR e RA: O palco.
RA: Há um trabalho muito intenso a nível de estúdio. Tivemos a oportunidade de trabalhar agora com o José Fortes para este álbum e de perceber que o estúdio pode ser o nosso palco, a partir do momento em que fizemos os takes directos e ele foi o captador de emoção. Ele gostava muito de dizer: «Eu proponho-me a captar emoções. Meto os microfones onde acho que capta o som da melhor maneira e capto as emoções». A partir desse momento, o estúdio foi muito intenso, com o José Fortes. Mas somos do ao vivo e Berlim é que nos deu isso.
PR: A nossa experiência é ao vivo, foi aí que crescemos e aprendemos muita coisa.
RA: Berlim é a cidade em que uma só banda dá 80 concertos por ano. É incrível e deu-nos um calo que nos fez e continua a fazer evoluir.
PR: Já a nível de energia, é completamente diferente. Estar a tocar numa sala vazia, onde estou só eu e o Roberto, é uma energia que nós criamos e é a nossa comunicação. Mas ao estar com um público, essa energia passa entre todos e todos os concertos são diferentes por isso mesmo.
RA: É um acto simbiótico muito bonito. Não estaríamos ali sem eles nem eles ali sem nós. Não nos podemos colocar superiores a eles.
PR: Não faz sentido não tocar ao vivo, pra nós.
RA: Até porque hoje, se se vive da música, é a tocar ao vivo. Não se grava um álbum à espera que se venda um milhão de cópias e se fique rico. É ao vivo que as pessoas nos conhecem, mesmo a publicidade do boca-a-boca vem daí. Um exemplo muito bonito é o da Eugénia Lima, a acordeonista. Tocou em quase todas as aldeias portuguesas. Toda a gente conhecia – os media não; não denotavam um grande potencial de venda. Mas o meu avô conhecia, a família da Patrícia com certeza conhecerá. Isto pra nós é um estaladão na cara. Porque é que temos de ser superiores a ela por tocarmos em sítios maiores?
PR: O Pedro Abrunhosa só toca em Portugal. Vai tocar a Espanha e tem um palco vazio. Isso não nos interessa, atingir xis palcos em Portugal e não sair daqui. Interessou-nos vir cá porque fazia sentido apresentar isto aqui, mas agora temos que ir a Espanha, a França, ao Brasil, a todo o lado.
RA: É difícil. A música, como todas as outras coisas, tem lobbies muito grandes – mas isso é outra história. (risos)
Como é que chegaram ao José Fortes?
RA: Eu tive aulas com ele na ESAD, um ano. Foi lá que tomei conhecimento do que ele já tinha gravado. Depois, há um primo meu, o Miguel Augusto Silva – que fez agora uma editora nova, a Armoniz. Eles lançaram agora o primeiro álbum a solo do José Cid remasterizado e quem fez a remasterização do trabalho do Hugo Ribeiro – que gravou o álbum em 1971 – foi o José Fortes. Eles falaram muito e o Miguel perguntou-nos porque é que não falávamos com o José. Insistiu e lá fomos com a maquete. Ele gostou e deu-nos um alento enorme – se ele gostava, então era mesmo bom. (risos) Começámos a trabalhar em Fevereiro de 2013 e este álbum, o projecto 675, é gravado em Abril deste ano.
PR: Em Julho de 2013 viemos pra Portugal viver e desde então estivemos um ano com o José Fortes.
RA: O facto de haver a possibilidade de trabalhar com ele foi um motivo muito forte para virmos viver para Portugal outra vez. Ao início, não sabíamos o que íamos pagar, não tínhamos dinheiro. Falámos com ele e quase que nos bateu. «Vocês nem pensem que me vão pagar alguma coisa!» Disse que era uma colaboração, que não estava a perder tempo de trabalho por nossa causa, que combinávamos os dias e pronto.
O José Fortes é um senhor e hoje temos a sorte de lhe poder chamar amigo. Ensinou-nos muita coisa e teve uma paciência de mestre.
PR: Ver uma pessoa com 71 anos com uma paixão como a que ainda tem por aquilo que faz é realmente inspirador.
RA: Ele continua a trabalhar. Se não podíamos ir, ele pedia que lhe ligássemos um dia antes, para ter trabalho para esse dia. Não podia ficar um dia sem fazer nada. Ou ia misturar registos do José Alberto Sardinha ou ia fazer uma gravação ao Porto…
PR: E sempre a ler sobre os programas, sempre em cima da tecnologia… É impressionante.
RA: Ele é um poço vivo de informação. Acompanhou todas as fases do material sonoro que nós temos, do analógico ao electrónico ao digital. Como trabalhador do ramo, tem de estar a par das coisas, por isso sabe falar do digital como sabe falar do analógico.
PR: Há mais de 20 anos que ele não fazia um trabalho como fez connosco. Dedicou-se muito à música erudita, portanto ele fazia mais isso do que propriamente bandas.
RA: Sim, à música contemporânea. Foi bonito porque ele teve de se relembrar de certas coisas. Foi um processo de aprendizagem de ambas as partes, muito mais da nossa parte – mas eu creio que ele também teve aquele momento de «já não faço isto há tanto tempo, o que é isto da guitarra eléctrica, do feedback?». No disco De Eus Para Mim […] há uma distorção no final da «Alecrim». Eu, como me habituei a tocar com som limpo, já nem sabia como se fazia um feedback. Então eu estava com a guitarra, muito a medo pra não fazer barulho e ele pega em mim e na guitarra, arrasta-me para ao pé do amplificador e: «aqui, é isto!»
PR: E é ele que faz o feedback. (risos)
RA: Foi um encontro maravilhoso. Ele sentia essa necessidade porque trabalhar 50 anos na música portuguesa e não ter um retorno, no seu tempo de actividade, pode ser ingrato ou frustrante. Quando ele nos viu ali, motivadíssimos, a falar da Catarina Chitas e da Banda do Casaco, ficou admirado de gostarmos disso. Estávamos ali a consumir, em primeira mão, a Catarina Chitas e ele a brincar com reverses, a metê-la a cantar ao contrário e nós achámos delirante, nunca tínhamos ouvido nada assim. Fomo-nos motivando uns aos outros.
PR: Acho que lhe deu pica trabalhar com dois putos, que é o que somos. (risos)
RA: Mas muito na sua mestria de nunca influenciar o que quer que fosse da nossa parte. Nunca nos dizer «faz mais assim, faz mais assado», nunca.
PR: Uma ética no trabalho e um respeito pelo músico impressionantes.
PR: «Tenham tempo, façam as coisas com calma. Ai de vocês que tenham cerimónias comigo, eu bato-vos.» Foi sempre nesse estilo de «sejam vocês mesmos, façam as vossas coisas», porque lhe irritava – daí ter deixado de trabalhar com muitas bandas – aquilo dos produtores manipularem tudo à imagem deles e de repente já não serem os artistas a fazer as coisas, era o produtor que dizia pra fazerem.
No meio de canções muito portuguesas, têm uma canção sefardita («Durme»). Porquê a inclusão de uma canção estrangeira?
PR: Nós não a conhecíamos até fazermos um concerto com o Carlos Bica, em Berlim. Ele apresentou esse tema, que já tocava com o Trio Azul. Aprendemos a música, começámos a tocá-la e a partir daí começou a fazer parte do nosso repertório. Depois fomos saber um pouco da história: que era do século XII e que, na altura, Portugal e Espanha não eram como são hoje, em termos de fronteiras…
De certa forma é, até, um bocadinho portuguesa.
RA: Sim. É de um pré-Portugal. E é uma história curiosa. Quando apresentámos o nosso arranjo ao Carlos Bica, ele disse que não tinha sido nada daquilo que ele nos tinha dado. Isto porque tínhamos de tocar a versão que ele tocava, para ele tocar connosco. Mas gostámos tanto do arranjo, que fizemos assim. Chegámos lá e passámos uma vergonha.
PR: Foi a primeira colaboração – e única até agora. Ele é um músico que vem do jazz – do improviso – e o ensaio que tínhamos para apresentar as quatro músicas era só um. Entrámos em pânico e teve de haver um segundo ensaio, claro. (risos)