Com um Último Siso lançado em meados de 2014, João Marcelo – conhecido na música como Éme – não é um novato em estreia – já tinha gravado um EP e um disco quando se atirou a este novo lançamento – mas é um dos novos trunfos da pop portuguesa. Encontrámo-nos com ele numa destas tardes de Dezembro, em Lisboa, para falarmos do disco novo e do antigo, da escrita de canções e do trabalho, de Lisboa e da Sibéria, do Dylan e do Bonga. Para falarmos, no fim de contas, da (sua) música popular.
Altamont: Se tivesses de ligar o Último Siso a um outro disco, não no sentido de ser igual mas no sentido de haver uma ligação especial… lembras-te de algum? Português ou não, recente ou antigo…
João Marcelo: Hm… é uma boa pergunta… por acaso não sei. Acho que qualquer disco… não te consigo dizer. Nós vivemos sempre na primeira pessoa, não é? Provavelmente para vocês é mais fácil dizer isso que para mim, eu vivo na primeira pessoa… não consigo estar a dizer «O meu Último Siso tem bué a ver com o Highway 61 Revisited».
Tinha esse disco «preparado» para te fazer outra pergunta… qual é para ti o melhor disco de 1965 do Dylan?
Hm… eu preferia que a sequência fosse ao contrário, que tivesse saído primeiro o Highway 61 Revisited e depois o Bringing It All Back Home… para ser um todo a rockar, e depois o outro começava todo a rockar e de repente… mas gosto bué da «She Belongs to Me». E a primeira do Bringing It All Back Home, só o vídeo ter lá atrás o (Allen) Ginsberg, para mim…
Lançaste o Último Siso há pouco tempo. Uma coisa que reparei é que neste usas um vocabulário (ainda) mais simples e coloquial. Essa era uma das tuas preocupações principais? Falar a língua que as pessoas ouvem e falam.
Claro. A piada é que nós começamos todos a fazer as cenas meio por brincadeira, não é? Para fazer redacções e composições tivemos anos e anos de escola, portanto acho que é um bocado instintivo tentares fugir a isso. Quando como eu cresces a ouvir música americana e assim, tu percebes que eles não usam um vocabulário standard, pelo menos das cenas que mais curto ouvir. No início pensas sempre que é um bocado mais fácil criar muitos significados usando palavras formais. E depois percebes que quanto mais são tuas mais percebes delas. Quanto mais palavras tuas usas melhor conheces a forma como falas e o significado que dás às coisas.
Como se o importante aqui fosse seres tu próprio – não em termos de personalidade, mas como escritor de canções.
Exactamente. A genuinidade é uma coisa que se consegue, não está lá à partida. Quando comecei parecia que as canções não iam do início ao fim, percebes? Eram mesmo genuínas, era mesmo assim que fazia. À medida que vais trabalhando vais conseguindo pôr aquilo em ordem, de forma a que, mesmo que não seja, soe a genuíno. É sempre uma construção. A forma como tenho trabalhado, e acho que isso se nota no meu percurso de discos, é sempre uma coisa de progressão, de juntar tudo, de aglomerar tudo; e no fim acho que as canções vão sendo cada vez mais parecidas comigo. Mas é sempre uma construção.
Há uns momentos muito específicos no Último Siso que me pareceram propositadamente disruptivos. Há ali um bocado de distorção na «Confusão», fazes uma espécie de grunhido na «Temos Medo» e na «Partilhar a Vida» ouve-se perguntares se «é preciso repetir»… tentaste colocar essas coisas para o disco não soar demasiado sério, para o tornar mais humano e imperfeito?
Sim, isso foram tudo coisas que foram mesmo acontecendo e nós decidimos pôr. Nós pusemos isso também por acharmos graça. Mas no fim a piada é ninguém se levar muito a sério: nem eu me levo muito a sério, nem quero que me levem demasiado a sério, se não depois é um peso um bocado grande. Muitos músicos que conheço têm medo de gozar com eles próprios e com o trabalho que fazem, como se o trabalho fosse uma coisa sagrada… eu trabalho numa livraria e passo o dia inteiro a gozar com isso, portanto quando trabalho em música também não há mal nenhum em estar um bocado a brincar. Eu tentei mesmo fazer um disco do início ao fim, muito graças também ao facto de ter um produtor, que tem uma visão do «fim»; quando estamos a escrever as canções focamo-nos muito nas pequenas coisas e ter um produtor ajuda a não teres de te preocupar sempre com o resultado final. As pessoas dizem várias coisas diferentes em relação a várias canções, têm ideias diferentes e isso é que é bom.
O Gância (disco anterior) tinha um lado auto-depreciativo engraçado. Lembro-me que havia um verso de uma canção em que dizias que só sabias fazer canções quebradas… hoje já não sentes isso? Sentes que já chegaste ao ponto em que fazes canções inteiras?
Sim, dantes era mais auto-depreciativo, agora utilizo mais humor auto-depreciativo. Acho que isso vem de ganhar alguma confiança, de já saber bem o processo… quando conheces o processo, quando sabes que trabalhaste, acabas por ter mais segurança em relação a ti próprio e às coisas que fazes… e podes gozar à vontade contigo próprio porque no fim sabes que aquilo que tu fizeste é firme. Sabes que trabalhaste naquilo, que é mesmo teu e sabes que é uma coisa em que te empenhaste…
Lembro-me de ler na entrevista que deste à Bodyspace que não querias ser o início nem o fim de algo, não te querias sentir isolado. Mas logo na primeira canção do Último Siso (Não tratei) dizes que vives «num sítio assombrado /cansado de ouvir / sempre o mesmo fado». O que é que achas que a tua música traz de novo desse cenário? Não sei se interpretei bem…
A interpretação é sempre boa. Isso para mim é um dos pressupostos principais: a partir do momento em que ponho a música para as pessoas todas são tão boas como a minha. Isso para mim é importante… tudo o que eu não quero é ser moralista, percebes? Portanto, a partir do momento em que eu dou a música, depois também não posso estar a querer que as pessoas a vejam da mesma forma que eu. O «mesmo fado» é uma brincadeira… porque o fado é o destino e é também uma música popular urbana. E talvez aí tenha uma ligação com aquilo que eu faço porque faço uma música popular urbana. Se calhar o sítio não é assim tão assombrado, se calhar é um bocado… mas no fim as ligações do que faço ao fado são um bocado essas. Para mim o interessante seria se, por eu fazer «isto» aqui – que faço por outras pessoas já terem feito outras coisas noutros sítios e noutros contextos -, outras pessoas fizessem também as suas próprias canções. Para mim o mais importante foi aprender com as pessoas que fui conhecendo para não fazer igual a elas.
E com o B Fachada, agora nos últimos tempos, o que é que achas que aprendeste mais?
Há dias em que eu estou mais radical… Uma amiga minha ficou super zangada porque leu uma entrevista que eu tinha feito no Ípsilon, onde dizia que o Elvis e os Beatles eram só uma fotografia, não existiam como influência, porque as minhas influências são os meus amigos. Isso não é bem verdade, é uma radicalização daquilo que eu acho – e é mais ou menos uma citação do Jay Reatard -, mas… aprendi montes de coisas porque quando gostas das pessoas estás mais aberto a ouvir opiniões, porque te relacionas emocionalmente também… Não consigo sintetizar o que é que aprendi ou em que é que regredi com o B, mas tem tudo a ver com uma ideia de música popular, de aprenderes com a vida. Por isso é que digo que aquilo é muito radical, não podes excluir da vida as coisas com que não tens contacto físico… mas quando há presença física e emocional sem ser só musical é mais fácil sintetizar, perceber, e vice-versa. Moldar e a ser moldado.
Voltando ao Último Siso… o disco tem recebido muitos elogios. Queria contrapor um bocado isso e perguntar-te se já leste ou ouviste críticas negativas.
Há pessoas que não gostam… acham que a cena da Cafetra é fazer música muita «maluca» e assim, acham que o disco está muito fancy… Mas acho que desta vez, ao contrário do que tinha acontecido antes, as pessoas relacionam-se com as músicas, cantam-nas. Tem sido óptimo, mas acho que pela primeira vez o disco chega mais às pessoas, e às pessoas mais novas. É um disco também mais cantarolável…
Já nos disseste que te surpreendeu a reacção que as pessoas tiveram no Mexefest, e a forma como se ligaram ao disco. Quando entras em palco tens alguma expectativa mental sobre o que é que vai acontecer do lado de lá, como é que o público vai responder, ou entras apenas com a ideia de ir tocar as canções?
Eu nunca tenho uma ideia muito definida em termos de expectativa. Tu estás com os teus amigos e chegas ali e tens de ser um artista, logo isso é um twist que não te deixa pensar muito. E depois já vi montes de concertos, e quando vejo um concerto não quero que esteja ali uma pessoa a conviver comigo e a não tocar nada, tem de ser um artista. Então essa «viragem» impede-me um bocado de pensar dessa forma mais analítica sobre como vai ser o concerto. Mas é sempre surpreendente… sobretudo desde que saiu o disco. Eu adoro ver as pessoas a reagir à música, e as pessoas reagem todas de forma muito diferentes.
E em termos de processo criativo: costumas escrever primeiro as letras e ver depois que melodia encaixa ou pensas na melodia e daí tens o gatilho para a letra?
É uma boa pergunta… eu não sei bem, às vezes parece um bocado que as coisas já aparecem feitas. Eu não penso em palavras sem música, pelo menos para compor. Um é sempre gatilho do outro e vice-versa. Nenhum está isolado: a melodia serve as palavras e as palavras servem a melodia. Acho que essa é a forma, no fim parece que já está feito.
No Gância dizias que a Sibéria era longe e que gostavas da tua casa, mas que aí não havia luz. Agora dizes que não dá para viver na «Lisa»… onde é que te sentes em casa?
Eu sinto-me em casa em Lisboa, aquilo é só para chatear… eu nunca me ia incomodar a fazer uma música para dizer estritamente mal de uma coisa. Só o simples facto de fazer uma música sobre Lisboa, seja a dizer que é boa ou má… Já fui a alguns sítios e ainda não fiz canções sobre eles. Portanto, até agora o sítio mais marcante para mim é mesmo Lisboa.
Já li elogios teus ao novo disco da Angel Olsen… descobriste mais alguma coisa este ano que queiras comentar ou recomendar?
O B (Fachada) mostrou-me agora uns tipos de Trindade e Tobago, música tropical, que eu ando a curtir bué… Não me farto de propagandear também o William Onyeabor, que é um gajo da Nigéria, muito bom. Este ano também comecei a ouvir mais o Bonga… o Angola 72-74 é um disco muito fixe. Tenho ouvido bué o gajo dos Modern Lovers, como é que ele se chama?
Jonathan Richman.
Jonathan Richman! Tenho ouvido. Epá e as cenas da Motown, aquilo é tudo muito bom. Esse é o meu problema, estou sempre anos atrás…
O Kurt Vile dizia que o bom do passado é que não acaba…
É isso, é isso. O Kurt Vile é bué fixe. Ah, e o novo do Ariel Pink, também curto. O Zeca. O Dylan, estou sempre, sempre a ouvir o Dylan. E comecei a ler o Machado de Assis, foi importante para mim.
Pensando no teu futuro pela música… não te peço para fazeres previsões, mas se a oportunidade surgisse gostavas de fazer da música a tua principal profissão?
Sim, na prática até já faço, porque já é o que me ocupa mais a cabeça. Em termos práticos considero que é o meu ofício – pelo menos por agora, se calhar depois é outro. Também não gosto muito de fatalismos: se calhar vou gostar de fazer outras coisas mais tarde… mas agora o meu foco é este. Também não é muito o que me preocupa, de onde vem o dinheiro… a única questão é o trabalho, porque para fazeres uma coisa como deve ser tens que te dedicar a ela. São horas que passas a fazer, não há volta a dar, pelo menos para mim. Se eu fosse um génio…
Aquela ideia romântica da inspiração divina contigo não resulta? Tipo o dia em que o Pessoa escreveu o «Guardador de Rebanhos».
Isso é tanga, não é? Em pé… também não componho em pé (risos). É o tempo, o problema é sempre o tempo, é o que define ou não a profissão. O dinheiro é uma medida capitalista do tempo, não é? Quer dizer, se calhar não é, mas a frase fica bem, por acaso …
Pois fica… E agora para 2015, tens alguma ideia do que aí vem? Não sei se já escreveste alguma canção nova desde o Último Siso…
Vai ser começar a trabalhar canções… Vai haver aí datas e tal, fazer-me um bocado à estrada, que para mim é importante. Eu nunca tive assim uma experiência grande de estrada, acho que 2015 vai-me trazer alguma dessa experiência. Vou trabalhar para fazer mais e melhores canções, para sair uma coisa mais natural. Ver o que é que não está bem, trabalhar, fazer melhor… ter melhores canções. Essa é a meta.
Entrevista: Gonçalo Correia
Fotos: Alexandre R. Malhado