
Qual é a missão principal dos Lavoisier?
RA: No início começámos a fazer música com um espírito de alerta, de tentar fazer uma coisa responsável. No mínimo, que não fizéssemos com que as pessoas perdessem o seu tempo a ouvir-nos. A partir daí, é continuar a ter esse espírito de alerta, de atenção.
PR: E a questão de há pouco, quando falávamos de não haver essa pressão de termos tocar certas músicas pra fazer mais dinheiro e sermos verdadeiros connosco próprios.
RA: A missão é respeitar.
PR: Sempre com muito trabalho. Nós percebemos o que é que o trabalho nos dá por levarmos as coisas a sério. Uma vez fomos tocar a Copenhaga e falámos da «Machadinha» e estavam lá uns portugueses que se começaram a rir.
RA: (risos) «Quem é que toca a “Machadinha”?» Depois ouviram a música e ficaram com a lágrima no olho. Com aquela sensação de «Não estava nada à espera, desculpem, foi tão bonito». Ao fim ao cabo, há um sentimento de utilidade muito grande. Mesmo em Berlim, o sentimento de ser músico e ser útil para as pessoas começou pelo cantar em português. No repertório só tínhamos uma música em português, mas quando acabávamos de a tocar sentíamo-nos cheios.
https://www.youtube.com/watch?v=1LMN0X6Q5k4
PR: A missão era também falar da música tradicional portuguesa lá fora – e aqui.
RA: Há muito preconceito mas, felizmente, começa a haver muita gente que trata do assunto, que fala do Giacometti. Mas também não se deve usufruir disso como um poder intelectual, isso é terrível. As pessoas devem assumir o espírito de partilha e fraternidade em termos de cultura. Se não conhecias, ainda bem que te pude transmitir este conhecimento e apresentar o Giacometti porque realmente foi muito importante pra mim. Espero que seja tão importante pra ti como foi pra mim.
PR: E é também uma batalha contra o fado. Quer dizer, contra…
Contra o «Fa(r)do».
RA: É mesmo. É um fardo. Há um documentário sobre o José Mário Branco em que se vê que, na altura, se assumia peremptoriamente «Eu sou contra o fado, categoricamente». O fado exige um efeito narcótico sobre a sociedade. Dão-to pra mastigares e estares adormecido, pra não pensares realmente nos problemas da tua sociedade. Pra não seres activo, adormeceres-te numa pseudo-cultura que até chamam de tradição! Então na altura deles tinha quê, quarenta anos? Eles repudiavam o fado.
Não é que estejamos contra o fado: não assumimos a música porque estamos contra alguma coisa mas sim porque queremos estar ao lado de alguma coisa. Queremos estar mais ao lado das pessoas e transmitir uma partilha bonita, a música tem esse poder. Os apoios culturais, as verbas, as bolsas, tudo vai para o fado. Diziam-nos «gosto muito do seu fado» e nós respondíamos «mas oiça, nós não fazemos fado», «ah mas é parecido». Não é que não tenha nada a ver, o fado até pode ter ido lá beber.
Há um preconceito gigante em aceitarmo-nos como portugueses, com a nossa própria cultura. Se ouvimos uma velhota «irritante» a cantar um vira, não devemos sentir vergonha. Devemos sentir o maior orgulho do mundo. É inevitável ganhar esta percepção, estando lá fora.
PR: Por exemplo, na última tour que fizemos, fomos tocar a Hamburgo num festival para comemorar os cinquenta anos da imigração na Alemanha. Foi dos piores concertos que demos na nossa vida, detestámos tocar ali. As pessoas não perceberam, estavam ali de garrafão…
RA: Queriam ouvir o Berg, do Factor X; queriam esta última que ganhou a Eurovisão.
PR: Fomos pra lá com esperança, a pensar que as pessoas iam perceber, que se iam identificar. Tocámos um vira e estava o rancho todo a olhar pra nós, com uma cara de terror. Ficámos tão mal, depois de uma tour na Alemanha, a tocar para alemães, um público super respeitador e agradecido… Íamos cheios de esperança tocar para os portugueses emigrantes e correu muito mal. Ficámos desolados, fomos muito mal recebidos.
Estás a tocar lá fora, a ser super bem recebido por pessoas que não percebem nada daquilo que estás a dizer, super interessadas pela tua cultura e depois vais tocar pra portugueses que só falta mandarem-te tomates pra cima… É terrível, não faz sentido. Mas também conhecemos muitos portugueses interessados em levar a cultura portuguesa lá pra fora.

Sente-se muito esse preconceito. Quando se fala num festival como o Bons Sons a outras pessoas, parece que têm necessidade de um nome sonante e estrangeiro, em vez de começarem por valorizar o que de bom se faz por cá.
PR: É algo que nos atravessa pela história, «o estrangeiro é que é bom».
RA: Mas é algo que felizmente está a mudar bastante. Termos este ano um Bons Sons que teve a dimensão que teve nos média, no boca-a-boca… Hoje quando dizemos a alguém que fomos aos Bons Sons, ficam surpreendidos e dão-nos os parabéns. O facto de ter existido um festival daqueles com a dimensão que teve é espectacular. É uma perspectiva de futuro bonita.
PR: É necessário haver espaço para apresentar os projectos que se fazem aqui. E nem vou falar na quantidade de festivais que Portugal tem, que é uma coisa absurda. A Alemanha é capaz de não ter tantos festivais, em comparação. É muito mau as pessoas deixarem de consumir concertos fora de festivais e guardarem-se o ano inteiro para eles. Muitas vezes não querem saber das bandas que vão tocar, vão é ao festival. «Quem é que vai tocar? Eu não sei, mas vou ao Alive.»
RA: Quantas vezes íamos tocar por uns míseros 2€ que ninguém queria pagar. E eram três bandas.
Há também muita gente que deixa de ir a concertos com a desculpa de os poder ver gratuitamente noutra ocasião.
PR: É outra coisa que se pensa em Portugal, que tem de haver concertos gratuitos. É algo que se cultivou muito. As câmaras dão sempre concertos gratuitos e as pessoas incutiram que não têm de pagar para os ver. É uma das grandes diferenças: em Berlim temos um público habituado a consumir concertos, a perceber que é preciso comprar o CD para ajudar a banda.
RA: E passas um chapéu e caem notas, não caem moedas.
PR: Em Berlim, a maior parte dos concertos que fazíamos tinham entrada livre e, no final, passávamos um chapéu. Não ficava atrás de cachets que recebemos aqui. As pessoas têm a consciência de pôr qualquer coisa, mesmo que o concerto seja gratuito. E CDs vendemos lá fora, não vendemos quase nada aqui.
RA: É muito difícil, mas viemos com um espírito optimista. Deixámos o pessimismo em 2009, em Portugal.
PR: Quando dissemos aos nossos pais que íamos voltar pra Portugal, eles disseram-nos que estávamos loucos, que em Portugal as coisas estavam horríveis.
RA: Foi muito contra-corrente, voltarmos agora. Toda a gente a ir e nós a voltar.
PR: Mas a possibilidade de trabalhar com o José Fortes, por exemplo, só aconteceria se nós estivéssemos cá. Foi uma das grandes razões para o nosso regresso, estava na altura de mostrarmos aqui o que estivemos a fazer lá fora. Isso e as saudades, comida e sol… Foram 4 anos intensos, já estava na altura.
RA: Também o facto de olharmos para Portugal e estarmos cada vez mais orgulhosos da música que estava a aparecer aqui. A consciencialização da identidade do que é um músico português no mundo, as influências que tem…
PR: Montes de coisas a acontecer com uma identidade própria e diferente, o preconceito a começar a desaparecer e poder cantar-se em português…
RA: Assim que houve a perspectiva de voltar pra Portugal, quisemos mergulhar no que se estava a fazer cá. Fomos descobrir os Ermo, A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria… Embora tivéssemos encontrado algumas coisas menos boas, o importante é fazer, acordar desta apatia. Identificávamo-nos bastante com muito do que se andava a fazer. Por nossa conta, tentávamos dinamizar a cultura popular portuguesa em Berlim.