A revista Blitz tem, desde há algum tempo, acompanhado cada edição sua com um CD exclusivo. Depois de algumas edições menos conseguidas, como que apenas a testar as águas, a iniciativa parece ter encontrado o seu ritmo e tem vindo a subir a fasquia. Alguns dos melhores exemplos foram o disco de «raridades» dos Linda Martini ou o óptimo álbum ao vivo dos Capitão Fausto, Grelhados ao Vivo. E essa marca de qualidade volta a subir uma vez mais, com a edição exclusiva de A Vida Secreta das Máquinas, de Rodrigo Leão.
O disco, que saiu com a edição de Dezembro da Blitz, é uma pérola. O conceito mais ou menos longínquo terá nascido dos sons das máquinas, uma instalação eléctrica defeituosa em Goa ou gruas numa obra em Lisboa, como o próprio músico explica à revista. Leão é isso mesmo, um músico até à medula, e para um músico todos os sons são relevantes, no mínimo influenciáveis e no máximo utilizáveis. Mais tarde, com o convite para actuar no estreante festival Lisb/On, o conceito de electrónica maquinal foi sendo trabalhado, com o objectivo de apresentar esta obra nesse evento.
Acontece que, admite Leão, o resultado não o satisfez totalmente. Homem da música instrumental mas não particularmente fluente em electrónica, sentiu que tinha de pegar no que tinha feito, retirar-lhe alguma dessa electrónica, compor mais alguns temas ambientais que fizessem sentido no conjunto e, no fim, dar-lhe mais o seu próprio cunho. Para tal socorreu-se de companheiros de longa data e de gente como o muito recomendável Rui Maia, dos X-Wife, que parecem ter despertado nova vida num autor aparentemente preso numa fórmula boa e de sucesso.
E o resultado é magnífico.
O que temos é um disco, 10 temas 100% instrumentais, que navegam entre o som ambiental e uma discreta electrónica, tudo feito com uma elegância e uma sobriedade que fazem toda a diferença. Estamos longe de projectos como a revisitação electrónica dos Madredeus e a milhas das parolices Budha Bar e quejandos. Aqui, a composição é serena, nocturna, seguríssima. Maquinal, sim, mas nada de agressividade industrial. Só um mestre na composição conseguiria assentar um disco dedicado às máquinas e insuflar-lhe tal vida como Rodrigo Leão consegue fazer.
O músico admite que «apesar de ser em meu nome é um disco à parte da minha carreira». O facto de ser um disco nascido para um evento específico e para uma edição também ela específica (acompanhar uma revista), terá retirado a Rodrigo Leão qualquer pressão comercial, e o resultado é muito feliz. Aqui e ali, reconhece-se o toque do seu criador, com momentos de luminosidade e grandiloquência que são a sua marca. Mas tudo isso é feito de forma sóbria, em permanente contenção e understatement, afastando-se daquele som «maior» que fez os maiores sucesso da carreira do compositor. E é essa sobriedade, juntamente com o controlo de um mundo «electrónico» que não é o seu, que faz deste disco um triunfo.
Ouve-se Brian Eno. Ouve-se toques dos momentos menos motorik dos Kraftwerk. Ouvem-se ecos subtis e distantes da dupla de mestres Gainsbourg/Vannier. E, claro, ouve-se Leão e Yann Tiersen, num registo sempre visual e cinematográfico que quebra a claustrofobia das máquinas.
A Vida Secreta das Máquinas não está disponível no Spotify, no Soundcloud ou em formato CD, nas lojas. Saiu apenas com a revista. Corre, por isso, o risco de escapar ao radar e cair no esquecimento. E isso seria uma grande pena. Se o próprio Rodrigo Leão parece «desvalorizar» o trabalho como um projecto à parte, na nossa opinião isso será um erro. Mostra uma outra faceta do autor, que só o engrandece e complementa o muito que já fez. Em todo o caso, nem tudo está perdido. A 23 de Março, na portuense Casa da Música, e no dia seguinte, no CCB, A Vida Secreta das Máquinas será apresentado ao vivo. A não perder.
Seja como for, corra ao quiosque mais próximo. Pode ser que por lá tenha ficado algum exemplar deste belo álbum, que fechou 2014 de forma surpreendentemente bela.