Se Mazgani nasceu no Irão e cresceu em Portugal, a sua identidade musical foi toda ela construída na língua de Dylan e de Cohen. Os songwriters são a sua praia mas, dentro desse território, Mazgani não toma duas vezes banho no mesmo rio. No primeiro Song of the New Heart, faz um disco competente mas talvez penteado demais (onde o dedilhar imaginário de Jeff Buckley e as baladas à Dave Matthews Band estão muito presentes). No EP Tell the People e no segundo álbum Song of Distance, Mazgani deita as baladas fora e opta por um registo cru, experimental e rockabilly (muito influenciado pelas fases mais turbulentas do Tom Waits e do Nick Cave). Agora, neste soberbo Common Ground, Mazgani faz uma síntese entre o lado doce e polido do primeiro disco (agora menos pop e mais folkie) e o lado explosivo e despojado do álbum anterior (agora menos espontâneo mas mais apurado), ambos cosidos pela mesma linha de resignada tristeza.
A produção e interpretação dos multi-instrumentistas John Parish (o grande companheiro de estrada de PJ Harvey) e Mick Harvey (a mais viciosa das “más sementes” de Nick Cave) é tão brilhante quanto económica, deixando espaço para a poesia de Mazgani se fazer ouvir. Com a sofisticação literária de um Nick Drake, e partilhando com o seu mestre a mesma paixão pela poesia romântica inglesa, Mazgani recorre a metáforas intemporais da natureza para expressar os seus estados de alma mais sombrios.
“Dog At Your Door”, a faixa que abre o álbum, fala-nos do amor enquanto submissão (“I will crawl at your floor”) e recorre a um artifício interessante: por diversas vezes há uma pausa longa que anuncia um refrão que não vem, pelo que, quando finalmente aparece, a tensão é tanta que explode com muito mais comoção, com a guitarra, o órgão, a bateria e a voz, todos a chorarem ao mesmo tempo, num registo bluesy próximo do “Since I’ve Been Loving You” dos Led Zeppelin.
Segue-se o “Into the River”, bonita balada que não destoaria nos primeiros álbuns de Tom Waits. Cativando-nos logo à primeira, reúne todos os ingredientes necessários para ser o próximo single. Acaba por ser uma das canções menos sombrias do álbum porque não há aqui rendição perante a auto-destruição nascida da dor mas sim um apelo ao seu fim (“Throw your pain into the river/wash away your wounds of silver/the wrong, the wrong that you do”).
Em “Blow Wind” Mazgani dá uma chapada no conforto do ouvinte e apresenta-nos uma canção eléctrica e obsessiva, cuja guitarra, dir-se-ia, é tocada pelo próprio diabo à meia-noite. A sua voz atormentada implora ao vento para soprar as suas desgraças para longe. O baixo distorcido à Black Rebel Motorcycle Club faz igualmente questão de nos provocar o máximo desconforto.
Radio friendly e com menos de três minutos, “Distant Garden” foi a escolha mais que natural para primeiro single. E que bonita metáfora das saudades são estes jardins distantes (“The patient angels waiting still in distant gardens”).
A apaixonada “Hold me Awhile” pode parecer apenas uma luminosa canção de amor (“The world’s crumbling in your gentle eyes”) mas o seu arranjo musical triste, com os seus sopros dolentes de funeral, sugerem-nos que mesmo o mais deslumbrante amor transporta em si as sementes do seu fim.
“Wasteland” retoma o registo agressivo e eléctrico do “Blow Wind”, desta vez apresentando-nos (com uma entoação de voz próxima da de Alex Turner dos Arctic Monkeys) a crónica de uma traição (“You burned the temple down/broke the promise that you made/and all your armies drown/along with the kingdom you betrayed”).
“Absent lover” prossegue com o tom incómodo da faixa anterior, desta vez com um som estranho de guitarra, como se esta fosse tocada debaixo de água. A repetição deste bizarro riff de guitarra ao longo de toda a canção dá agora um travo obsessivo ao tema da saudade, em contraste com a doce nostalgia do “Distant Garden” (“This pain won’t win you over/and I wonder where you are/my cruel absent lover/mocking my open scar”).
“Your Voice Grows Dry” é a canção gótica do álbum, com a sua progressão de acordes macabra, bem apropriada às palavras sombrias que a acompanham sobre a desilusão e o orgulho ferido (“The dream is over/you swallow your pride”).
Se o tema da culpa tinha sido abordado em registo eléctrico na zangado “Wasteland”, Mazgani revisita-o agora em modo acústico no humilde “Nameless Beggar” (“The guilty freedom I’ve desired/…/can’t mask the shame from my eyes”).
A encerrar o álbum, está a canção que lhe dá nome, a maravilhoso “Common Ground”. Todo o arranjo é invulgar (o som de um projector de cinema; um órgão seventies à John Paul Jones criando uma ambiência etérea, como se já não pertencesse a este mundo a voz que se nos dirige; a bateria ausente; as pinceladas suaves da guitarra, como se nos pedisse desculpa por tocar), todo cuidadosamente orquestrado para que nada abafe a poesia de Mazgani. E se nos restasse alguma dúvida sobre o tom pessimista que percorre todo o álbum, a sua voz trémula desfá-la aqui de vez: “You whispered farewell/I’ll travel faster alone/neither of us/can find that common ground”.
Enfim, um álbum de maturidade, onde as influências do costume estão lá mas desta vez abafadas por algo bem mais sonante: a sua própria “voz”.
(Declaração de Interesses: graças a um amigo comum, tive o privilégio de conviver de perto com Shahryar Mazgani.)