Em primeiro lugar, uma declaração de interesses: desde que conheci a sério a sua música, há coisa de quatro ou cinco anos, que vivo obcecado com Serge Gainsbourg. Comprei os discos todos, li livros, ouvi versões. Acho-o provavelmente o maior génio musical do século XX. A partir daqui, o resto deve ser lido com o necessário desconto, tendo em atenção o que acabei de dizer.
Quem o conhece, de todo, conhece sobretudo o “Je t’aime…moi non plus”, música absolutamente fabulosa em todos os sentidos, que simbolizou para a geração dos nossos pais o início tímido da transgressão sexual.
Em 1970, Gainsbourg já era a maior figura musical de França. No activo desde o final dos anos 50, com vários discos no currículo, começava a ganhar a aura de freak genial, mudando de estilos musicais sempre com grande mestria e um sentido pop inigualável, sustentado nos seus profundos conhecimentos de jazz e de arranjos clássicos. E, claro, havia sido o companheiro de Brigitte Bardot, o monstro misógeno que conquistara a bela mais desejada do mundo.
Em 1970, compra um Rolls-Royce. Gainsbourg, o excêntrico, não conduzia nem tinha chauffeur. Para se deslocar, com o auxílio de outros, tinha um bem mais prosaico Citroën 2 cavalos. O Rolls, esse, ficava na garagem, e era para lá que ele se dirigia com amigos, para beber, fumar e conversar. Nas suas palavras, “o Rolls era um bom carro. Serviu-me de cinzeiro durante dez anos”.
Estava também apaixonado. Quem conhece bem o seu trabalho, sabe que nunca produziu música melhor do que quando esteve realmente enamorado. Primeiro BB, e em 1970 Jane Birkin, a jovem ninfeta inglesa que ilustra a capa de Histoire de Melody Nelson.
Juntamente com Jean-Claude Vannier, que fez os arranjos dos seus melhores discos, Serge trabalhava naquele que não era apenas o mais ambicioso trabalho da sua carreira, mas que viria a ser o melhor.
É um disco conceptual que se ouve como se não o fosse. Ode ao amor (à quase pedofilia?) entre uma jovem de 15 anos e o seu encontro iniciático com um homem mais velho que com ela se fascina, o disco tem apenas sete faixas e pouco mais de meia hora de duração. Tal como outro dos meus grandes favoritos L’Homme a Téte de Chou (1976) – também ele conceptual – as melodias vêm e vão, encontram-se mais tarde noutras faixas, completam-se. No fim, ficamos com um documento de um génio na mais absoluta posse de todas as suas faculdades: rock, ié-ié, jazz, clássico, e um sentido incrivelmente sensual nos arranjos e na composição, enfim, tudo com as letras, inigualáveis, do monstro Gainsbourg. Ele que, até ao fim da sua vida, fez discos de todos os géneros, tem em Histoire de Melody Nelson a súmula de todo o seu trabalho. Tirando o reggae, que explorou em vários discos mais tarde, tudo o que alguma vez fez tem lugar neste disco, de uma forma absolutamente coerente.
Sei que, provavelmente, para quem não conhece o disco ou o autor, não estarei a explicar muito bem que raio de disco é. Estou a ouvi-lo e, como sempre acontece, estou hipnotizado. Não agarra ao início, mas ganha com cada audição. E com um copo de bom vinho ou, quem sabe, outras substâncias, e apenas olhar para o tecto a ouvir cada nota, cada arranjo, cada pormenor, é a experiência que mostra tudo o que a boa música pode ser.
Para quem acha que Bowie é, de facto, o camaleão, Gainsbourg mostra o que é a verdadeira reinvenção. Até ao momento em que, criticado por ter feito uma versão reggae do hino francês, comprou em leilão o manuscrito da letra do hino, como que dizendo que, a partir daquele momento, podia fazer o que quisesse com ele.
Por todos os motivos, é na minha opinião o melhor disco “pop” alguma vez feito. Porque pop pode ser negra, profunda, elegante e consequente.
Agora, com a vossa licença, vou ali carregar de novo no play.
Olá, Tiago, nada a emendar no que escreveste a respeito de Gainsbarre;) E tb.para mim o Gênio musical do século XX, ainda ouvi ante ontem uma compilação com o tema geral de Melody Nelson, e fiquei abismada pela qualidade de musical da sua obra,a sua arte tanto na escrita,de rimas duma riqueza ainda não igualada, como ao nível da composição musical, Parece me que ainda não tem hoje em dia quem lhe chega aos calcanhares hoje em dia.
Tive o prazer de assistir a sua tournée de Adeus, foi espetaculare, e todos nós no final dançar oom Aux Armas Etc…Paro aqui , tanto haveria para relembrar e exaltar em relação a este Homem,; as pessoas morrem qdo se deixa de falar delas…
Por isso….
O melhor ano possível, com algumas expectativas preenchidas e muita resiliência são os meus votos de bom ano 2020. Cordialmente Dominique, Vila do Bispo
Muito grato pelo seu texto :D Recomendas algo para quem está ávido por ouvir outro LP nesse estilo? Muito obrigado desde já.