Só em 1984, Amália Rodrigues e José Afonso se encontraram, pela primeira e única vez.
São as duas maiores figuras da música portuguesa do Século XX mas, por incrível que pareça, estiveram muito muito perto de passarem toda uma vida sem se encontrarem, sem trocarem uma palavra.
Amália Rodrigues era vista como uma diva do fado e uma figura próxima do regime de Salazar; José Afonso era a cabeça do movimento da música de intervenção, de contestação artística à ditadura. Talvez seja essa a razão para tão grande afastamento. Mas isso nunca poderia significar que não conhecessem a obra um do outro, e não fossem olhando o que o outro fazia, para onde a sua arte o levava.
Entre os dois, Zeca era o mais rígido, neste sentido. Nascido para a música no fado e nas baladas de Coimbra, aparentemente não gostava de Amália e do que ela, para muitos, representava. Curiosamente, a fadista era, socialmente, de uma classe ainda mais baixa que Zeca. Não tivera ocasião de completar os estudos, nascera numa família pobre e sem recursos, e subira a pulso sem uma verdadeira comunidade de pares que a acompanhasse. Em comum, além do talento, tinham um amor à palavra cantada e aos poetas, tanto clássicos como contemporâneos. Cada um à sua maneira, tinham sido praticamente pioneiros no resgate de textos clássicos de Camões e outros, para os enquadrar num contexto musical do século XX.
Amália tanto tinha admiração pelo trabalho de José Afonso que, antes do 25 de abril, gravou duas canções suas: “Balada do Sino” e “Natal dos Simples”, em 1970. E chegou mesmo a gravar “Grândola, Vila Morena“, o que lhe trouxe alguns dissabores. A cantora gostou da canção, editada em Cantigas do Maio, de 1971, mas só em 1974 a gravou. Quando a revolução explodiu com o regime, para Amália ficou claro que não devia gravar a sua versão, para não ser acusada de oportunismo ou de estar a tentar surfar a onda do 25 de Abril. Mas é claro que a Valentim de Carvalho não pensou assim, e forçou a manobra. Amália cedeu e acabou por ser muito criticada por isso, tanto em Portugal como em França, exactamente pelas pessoas da esquerda que ainda a conotavam com ligações e simpatia à ditadura (versão que levou muitos anos a ser, em grande medida, desmentida).
Nas palavras da própria Amália, numa entrevista à revista Plateia, em 1976, citada no livro “Amália e os Poetas”, de Vítor Pavão dos Santos:
“Eu gravei a Grândola porque gostei muito dessa canção. Ouvi-a antes do 25 de Abril e gostei muito. Não por ser revolucionária mas por ser bonita. E disse ao Valentim de Carvalho que queria gravar… Claro que veio o 25 de Abril e pus logo o projecto de parte, adivinhando o que as pessoas iriam dizer. Depois, numa festa [do Movimento das Forças Armadas] realizada no São Luiz, pediram-me para cantar esse número. A partir daí, foi da próprio Valentim de Carvalho que começaram a insistir para que gravasse. Fui atrás do entusiasmo, não pensei e gravei mesmo. Claro que não tinha necessidade nenhuma de gravar a Grândola… Gostei da canção, não pensei, e pronto… Além de outras pessoas, o próprio autor não gostará que eu a cante… Mas não é minha obrigação, nem tenho feitio para isso, estar a pensar se os autores gostam ou não gostam. Quando gosto de uma cantiga, canto-a. Depois as outras pessoas são aquilo que são. E isso já não é comigo”.

Apesar de a fadista viver rodeada muitas vezes de muita gente de esquerda, em tertúlias até na sua casa, Zeca nunca foi frequentador. E parecia mesmo alimentar uma antipatia pela grande senhora do fado. Uma das primeiras ocasiões para um encontro – que até os juntaria no mesmo palco – veio de um convite do jornal Se7e, da parte do jornalista José Carlos Vasconcelos, hoje em dia diretor do Jornal de Letras. Este estava a organizar uma festa do semanário e convidou Zeca para cantar, revelando-lhe que também Amália Rodrigues participaria. Zeca, que andava zangado com o jornal, aproveitou esse facto para rejeitar, irado, história relatada no livro Zeca Afonso: Livra-te do medo, de José António Salvador. Amália acabou por também não participar, alegadamente depois de saber que Zeca rejeitara, por sua causa.
E agora, finalmente, o encontro, breve, demasiado breve, entre estas duas grandes figuras, corria o ano de 1984. A história é relatada pelo jornalista Eugénio Alves, na altura dirigente do Clube dos Jornalistas, no livro “Cantores de Abril”, de Eduardo M. Raposo.
“A Amália era considerada uma cantora do regime e o Zeca o homem da oposição: Muita coisa os separava, mas o Clube dos Jornalistas, numa festa de lançamento resolveu, por proposta minha, juntar os dois grandes intérpretes da música portuguesa. Eu fiquei encarregado de convencer o Zeca, o que não foi fácil. Só lhe disse no próprio dia e apenas lhe falei que havia uma festa. Ele ripostou que estava sem gravata mas eu retorqui que não era um homem de gravata e lá acabei por levá-lo, embora fosse um pouco zangado comigo. Eu era anfitrião e membro da direcção e expliquei-lhe que não era obrigado a falar com ela. Ele resmungou; já estava um pouco debilitado, com sintomas da doença. A Amália chegou depois e quando soube que o Zeca estava lá, foi ela que tomou a iniciativa de falar com ele. Eu estava com receio da reacção dele. A cena foi assim. A Amália aproximou-se muito comovida pelo facto de ele estar doente e ao mesmo tempo receosa e perguntou-lhe: – Zeca, acha que eu canto bem? Ao que ele respondeu: -Então se a senhora não canta bem, quem é que canta bem em Portugal? Ela chorou comovida. Foi de facto um momento único esse primeiro e único encontro desses dois ‘monstros’ da nossa música. De facto, ele era um homem ‘fechado’, era rígido na defesa dos valores da liberdade, de uma sociedade mais justa, dos seus valores políticos na defesa dos interesses populares, mas em termos humanos era aberto, generoso e a atitude dele em relação à Amália foi paradigmática. A Amália, se calhar, foi mais utilizada pelo regime, por razões conjunturais, como ele no fundo também foi, embora em sentido contrário”.
O encontro foi breve e tudo o que chegou até hoje são estas palavras e uma única fotografia, tirada à pressa, a documentar o momento. Gostaríamos de pensar que falaram mais, que poderiam almoçar e passar uma tarde no Brejão, na costa alentejana. Que, a sós, poderiam quebrar as barreiras e uma pessoa ver a outra, apenas por si mesma. As histórias que essa mesa ouviria…