
Fomos à cidade-natal – Odivelas – de Roberto Afonso e Patrícia Relvas (Lavoisier) ouvi-los dar uma lição sobre emigração, ser músico português (no estrangeiro) e como é sentir na pele o património da música tradicional e popular portuguesa. A hora de conversa na relva e no carro – que, a meio, a tempestade ameaçou chegar – ficou registada nos milhares de palavras que se seguem e deixou-nos a salivar por novas canções, novas revisitações e novos pensamentos:
Altamont: Foi em Odivelas que se conheceram mas o projecto floresceu em Berlim. Como é que foi o percurso até lá? O que vos deu vontade de revisitar o património musical português?
Roberto Afonso: Foi no 7º ano que nos conhecemos mas já morávamos a 400m um do outro desde os 2 anos da Patrícia.
Patrícia Relvas: Eu fui estudar para a António Arroio, em Lisboa, e o Roberto ficou a estudar em Odivelas. No meu último ano, voltámo-nos a encontrar, começando de novo a falar. Fui estudar para as Caldas da Rainha e a amizade passou para um namoro.
RA: Eu candidatei-me a qualquer vaga que houvesse na Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha (ESAD) – poderia ir para qualquer curso, o objectivo era ir ter com a Patrícia. Muito romântica, esta parte! (risos)
Mas a música começa antes. Eu já tocava guitarra, numa abordagem muito solitária, de tocar sozinho no quarto. Em Odivelas não há grande encontro cultural, um sítio que te estimule ao veres uma banda ao vivo. A ESAD estimula-te nesse sentido, por ser uma faculdade de artes. Toda a gente, como eu, era músico solitário e íamo-nos encontrando. A coisa começa a ficar mais a séria com o tributo a Nina Simone, que era o projecto final do curso.
PR: Foi a primeira vez que cantei a sério, em palco. Juntámos uma equipa de sete pessoas e montámos um espectáculo Para além de mim, havia outros que estavam também a começar, por isso reuniu-se um grupo não de estudiosos da música mas com muita vontade de fazer alguma coisa.
RA: Embora cantando em inglês, na altura já existiam muitas questões como: Porquê cantar em inglês se somos portugueses? Porque é que nos sentimos menos ridículos a cantar em inglês?
Havia um sentido de preocupação e de atenção em relação a isso e tivemos oportunidade de estar com músicos de vários sítios, com os quais tivemos muitas conversas sobre isso. Depois vinha também o tropicalismo – os brasileiros a absorverem a cultura de outros e a fazer dessa digestão uma coisa própria, sem perder a identidade brasileira.
PR: Nas Caldas havia muita gente que nos criticava e perguntava porque é que não fazíamos coisas originais, em vez de tributos. Era a primeira coisa que estávamos a fazer, não sentíamos necessidade de fazer originais.
RA: A primeira abordagem à música é sempre essa. Tentar tocar coisas que se conhece é o primeiro contacto que se tem, a primeira manifestação eufórica. O primeiro sentimento de realização acontece com a abordagem directa aos artistas que tu gostas. Mas havia essa questão da música portuguesa: Porque é que não cantamos em português? Porque é que é tão ridículo? Porque é que é tão difícil?
PR: Ainda andámos um ano com esse projecto, de Norte a Sul, mas era uma logística muito grande: éramos sete pessoas, uma tela de cinema… Estava toda a gente a acabar os cursos, começaram a dispersar.
RA: Toda a gente seguiu o seu rumo e nós tínhamos de seguir o nosso.
PR: Sempre tivemos curiosidade em viver fora. Na altura não se falava muita crise e não havia a necessidade de sair, mas queríamos ir ver como era e sair das Caldas da Rainha.
RA: Ainda tivemos um projectozinho só os dois.
PR: Sim, no Verão antes de ir para Berlim.
RA: Quisemos pagar as férias a tocar em bares, na costa Alentejana. Tocávamos as músicas da Nina Simone, música brasileira… Chegando a Berlim, foi extremamente complicado perceber que tínhamos deixado a família, os amigos, o carro e os facilitismos pra trás.
PR: Não conhecíamos ninguém.
Sabiam sequer falar Alemão?
PR e RA: Nada.
PR: Fomos literalmente de mochilas às costas, sem conhecer ninguém, e fomos pra lá viver.
RA: É um mito, dizer-se que se chega lá, se fala inglês e pronto. Foi muito difícil.
PR: Fui eu, o Roberto e mais um amigo que tinha um projecto com ele. Seguimos os três para Berlim e chegámos logo no pior Inverno dos últimos anos. Apanhámos -20ºC e pensámos: «O que é isto? Vai ser sempre assim? Isto é horrível!»
RA: Parecia a cidade a testar-nos.
PR: Logo no primeiro mês estivemos pra desistir. Não conseguíamos arranjar casa, não conseguíamos arranjar emprego, estava um frio horrível… Depois surgiu a hipótese de fazermos o Inovarte. Fomos a Portugal, fizemos as entrevistas… Não ganhámos a bolsa. Entretanto passou o segundo mês e começou a ficar mais fácil porque já estávamos a conhecer pessoas.
RA: Começar a fazer música era algo que tínhamos sempre na cabeça.
PR: De alguma maneira também íamos à procura da dificuldade.
RA: Da adversidade: se éramos capazes e o que é que ela nos podia trazer.
PR: Pela primeira vez éramos independentes. Estávamos a deixar de viver com o dinheiro dos nossos pais. Foi duro, mas crescemos muito.
RA: Não conhecíamos a língua, as pessoas, a cultura do país… Uma cultura difícil: não que sejam frios e distantes como há o cliché do alemão – muito pelo contrário, são pessoas afáveis -, mas não são dados. O que nos levou a Berlim foi toda a gente dizer que tínhamos de ir para lá. Nunca tínhamos pensado em ir para Berlim. Já tínhamos estado em vários sítios – Amesterdão, Birmingham, Barcelona, etc -, mas toda a gente nos falava em Berlim.
PR: Foi de doidos. Fomos sem nada marcado. Três semanas a viver num hostel, a gastar o dinheiro todo nisso.
RA: Mas pronto, a música sempre esteve presente. Claro que, no início, foi mais difícil de o fazer. Tínhamos de nos preocupar com tudo – falar um bocadinho de alemão, ter trabalho, dinheiro… A partir do momento em que essas coisas foram estabilizando, decidimos fazer alguma coisa só os dois. Sem problemas logísticos e podendo ensaiar todos os dias.
PR: Mas nunca pensámos que Lavoisier ganhasse as proporções que ganhou. Foi acontecendo, ficando mais sério.
RA: É altamente não haver pressão, em Berlim, e poder apresentar-se tudo o que se quiser.
PR: O facto de termos tido um part-time deu realmente liberdade pra pensar na música que queríamos fazer. Como não dependíamos dela, não tínhamos a prisão de ter de fazer um projecto que desse dinheiro, algo que limitaria as nossas escolhas.
Começámos pela música brasileira. Eram professores, pra nós. Aprendemos imenso e continuamos a aprender. A música portuguesa veio depois. O Roberto tinha começado a ler os livros do Lopes-Graça…
RA: Musicália, os Opúsculos… A missão que ele incorporava de proteger a música portuguesa: «O que é isto da música portuguesa? Porque é que em Trás-os-Montes se canta assim porque o terreno é mais inóspito? E no Alentejo cantam abraçados e o tempo é o abraçar de todos…» Montes de coisas que nos ensinaram a ser portugueses e a perceber Portugal de outra maneira, musicalmente.
PR: Quando o projecto estava a crescer tínhamos um problema enorme de perceber a nossa identidade musical e lá fora quisemos mesmo saber o que é a música popular portuguesa, este passado, esta tradição oral. Foi lá que descobrimos isto tudo porque em Portugal ainda era uma coisa muito distante.
RA: Já estávamos muito interessados no Giacometti.
PR: Quando saiu a colecção com O Povo Que Canta tivemos logo os doze DVDs e consumimos aquilo tudo…
RA: Religiosamente. Vimos aquilo com as lágrimas nos olhos: «Isto é tão bonito!» (risos)
PR: Sim, com as saudades todas, a fazer lembrar os nossos avós e tudo o mais.
RA: A tradição oral que nós temos é valiosíssima. Muitos povos europeus não têm esta longevidade nem este tratamento porque as fronteiras estiveram sempre a mudar, ao longo dos séculos, enquanto que Portugal esteve aqui sempre, desde 1200 ou 1300. E logo aí temos uma tradição que se calhar nenhum povo europeu tem, já que as fronteiras mudavam muito.
PR: Estarmos fechados numa ditadura durante 50 anos fez com que estas coisas se preservassem. Há sempre um lado positivo, não é? (risos)