Patti Smith levou a Oeiras as suas memórias, que cantou usando tanto palavras suas como emprestadas por outros, numa partilha profícua e reconfortante para lembrar que é pela arte, e pelo rock, que vamos.
Patti Smith, dama maior da palavra em todas as suas formas, não parece querer dedicar-se à sua reforma na pacatez do lar. Autora prolífera, tanto de poemas como de prosa, ativista atenta e curadora de um dos mais deliciosos perfis de Instagram que podemos encontrar por essa internet fora, não tem, também, descurado as atuações ao vivo. Desde 2015, ano em que comemorou 40 anos do lançamento do seu disco de estreia, Horses, que veio apresentar na íntegra ao Primavera Sound no Porto, já tocou em Portugal em quatro outras ocasiões, entre Paredes de Coura, Lisboa e Braga. As últimas atuações por terras lusas aconteceram ainda este ano com os Soundwalk Collective, por ocasião da exposição Evidence, criada por ambas as entidades e que estará patente no MAC/CCB até 15 de setembro 2024. Ontem, Portugal teve o privilégio de receber mais uma visita desta artista que, não sendo a mais virtuosa cantora/compositora da sua geração, é a autora de algumas das mais memoráveis experiências de comunhão coletiva através da música que a escriba deste texto já viveu.
O concerto que deu ao fim do dia de domingo nos Jardins do Marquês de Pombal em Oeiras conseguiu o feito de se descolar do contexto postiço e muito pouco punk do festival que a trouxe cá. Entre barraquinhas de gin tónico e de copos de vinho branco, e perante uma plateia seccionada por preços, com uma mistura constrangedora de lugares sentados e de pé, Patti Smith e a sua banda conseguiram transportar o público na narrativa mística que sabem criar tão bem, fazendo com que a envolvência perdesse importância. É essa a magia de ver Patti ao vivo, a sua presença comove-nos, perturba-nos, sensibiliza-nos. Durante uma hora e meia, partilhamos as suas memórias, as suas causas e as suas palavras, honrados de estar na presença de uma figura com tantas vidas e devotos do seu pensamento. As expectativas eram altas e, apesar do começo mais frio, o concerto não desiludiu ninguém.
Pontual e com o seu look do costume – calças de ganga, t-shirt branca, casaco e colete e cabelo em duas tranças – Patti Smith entrou em palco acompanhada de uma formação ligeiramente diferente da que levou a Paredes de Coura em 2019. Em formato quarteto e sem o lendário guitarrista Lenny Kaye, companheiro de banda desde o início, tivemos em palco Tony Shanahan, membro do Patti Smith Group, no baixo e nos teclados, o filho, Jackson Smith, na guitarra e Seb Rochford, membro de bandas de jazz como os Sons of Kemet, na bateria.
“Summer Cannibals” do álbum Gone Again, de 1996, abriu a noite enquanto um grande pedaço da plateia ainda tentava sentar-se, vítimas das longas filas que se formaram no recinto esgotado e pouco organizado. Sem demoras, Patti apresentou “Ghost Dance” (Easter, 1978) como uma canção escrita sobre uma tribo nativo-americana a quem foram roubadas as terras, mas que serve agora para dedicar a todos aqueles que são vítimas de perseguições, expropriação de terras e genocídio, numa (pouco) velada intervenção política.
Depois de uma bela versão de “Man In The Long Black Coat”, de Bob Dylan, a primeira cover de várias que ainda fariam, Patti Smith explicou que tinha escrito a música seguinte em memória de Johnny Cash, mas também como uma breve saudação a Baudelaire. “Cash” (Trampin’, 2004) veio relembrar que os concertos de Patti Smith são muito baseados em memórias (e do alto dos seus 77 anos já conta com algumas). Fala do marido, Fred Sonic Smith, que perdeu em 1994, fala de Robert Mapplethorpe, talvez o seu primeiro amor, fala dos músicos que já nos deixaram, uns amigos, outros só objetos de admiração, e canta-nos as suas canções, continuando a ser hoje, como era nos anos 70 em Nova Iorque, uma fã acima de tudo. Uma pessoa de uma sensibilidade artística inatacável que toma por missão o consumo e a divulgação da arte dos outros, criando a sua própria quando encontra lacunas por preencher, mas sem deixar de dialogar com quem a inspirou.
Mantendo o espírito das intertextualidades entre o seu trabalho e o trabalho de autores que admira, Patti introduziu, antes de “Nine” (Banga, 2012), uma referência ao “great poet” Fernando Pessoa, de quem já tinha falado no seu livro Year of The Monkey, contando uma história sobre um capitão deambulante, Pessoa (“but which Pessoa was it?”), Fado, Lisboa e as saudades das nossas mães. A Lana Del Rey e à sua “Summertime Sadness” pediu emprestadas as palavras para nos falar do seu namorado que depois se tornou seu marido e pai dos seus filhos (um deles ali presente), mas que será sempre o seu namorado no seu coração. Logo a seguir apresentou “Because the Night” como uma colaboração (com Bruce Springsteen) para a qual escreveu a letra que dedicou a Fred – mais intertextualidades – Fred pelas suas palavras e pelas palavras dos outros. Sendo um dos seus maiores hits não foi de estranhar que a porção da plateia que era sentada deixasse de o ser, juntando-se à banda e a Patti que, com um ar satisfeito, alterou a letra para dizer que a noite nos pertencia a nós, público, ao invés de aos amantes. Foi bom ver alguma da formalidade imposta pelas cadeiras e pelas grades ser ignorada.
“Agora temos Rock and Roll para vocês” prometeu Tony Shanahan, lançando-se numa estupenda versão de “Fire”, original de Jimi Hendrix, enquanto Patti abandonava o palco. Não deixando cair a energia que a canção anterior tinha injetado na audiência, a banda ocupou por uns minutos um merecido lugar de destaque, lembrando-nos que aquele era, de facto, um concerto de rock. Uma septuagenária, por muito carismática, não conseguiria as performances que consegue sem uma boa banda por trás e os três músicos não perderam a oportunidade de exibir também eles o seu virtuosismo, especialmente Jackson Smith que se revelou um guitarrista que com certeza não envergonharia o pai.
A segunda parte do concerto mostrou que o rock tinha surgido para ficar e já poucos foram aqueles que tentaram voltar a assumir os seus assentos. Em “Dancing Barefoot” (Wave, 1979) e “Pissing in a River” (Radio Ethiopia, 1976) a entrega e a urgência de Patti Smith cresceram, exacerbando os seus movimentos de poeta que declama possuída pelo espírito de uma estrela rock – she’s still got it! Antes do encore houve ainda tempo para invocar Kurt Cobain que nos deixou há 30 anos (tal como Fred Sonic Smith), e interpretar “About a Boy” (Gone Again, 1996) e a sua versão de “Smells Like Teen Spirit”, que gravou no álbum Twelve, de 2007, versão essa que pôs público e vocalista a saltar, numa simbiótica troca de energia.
A chamada à ação que é “People Have The Power” (Dream Of Life, 1988) fechou a festa numa versão bastante mais alegre do que a que tínhamos visto em março no CCB, acompanhada pela filha, Jesse Paris Smith, ao piano. Sem fazer grandes intervenções políticas e deixando a canção, que é enorme, falar por si, Patti recomendou mais uma vez que não nos esquecêssemos da sua mensagem e que usássemos a nossa voz. Há esperança, mesmo que nem sempre assim o pareça, e reconforta receber essa certeza da voz de Patti. Porque num mundo em mutação tão rápida, são precisos momentos como os concertos de Patti Smith. Não pelo seu vasto e variado repertório, que não o tem, mas pela constância e pelo positivismo, porque importa não deixarmos de nos maravilhar com a arte que nos rodeia. Foi, como já nos habituou, uma bonita purga coletiva e uma partilha profícua. “You were great, I love you” – repetiu Patti várias vezes para as primeiras filas. Ela é que é great e benditas sejam todas as vezes em que nos dá a oportunidade de testemunhar isso.
Fotografias por Andreia Carvalho e João Cautela cedidas pela organização.
