Patti cresceu numa família de classe baixa na zona rural de New Jersey, com tudo o que isso implica de conservadorismo, intolerância à diferença e falta de perspectivas de vida. Aos dezasseis anos, teve que abandonar a escola e empregar-se numa fábrica, um trabalho maquinal e extenuante que era a antítese absoluta das suas aspirações. Patti sonhava ser artista, idolatrava os poetas malditos franceses e os ícones do rock’n’roll americanos. Roubava livros de Rimbaud nas livrarias – o seu “amante secreto”. Nem pensar envelhecer naquele lugarejo estreito e mesquinho onde o simples facto de andar com um livro de um autor estrangeiro debaixo do braço era motivo de desconfiança.
Patti queria agarrar a sua vida e não ser arrastada por ela. Há um tema em Horses, “Free Money”, que acerta no ponto nevrálgico da sua condição de working class: possibilidades fechadas por todo o lado e o desejo quixotesco de as transcender (sim, amigo Jarvis: vinte anos antes de teres escrito a tua obra-prima, já Patti se debruçava sobre o mundo secreto da common people). Na canção, a protagonista sonha que ganhará a lotaria e que comprará um avião a jacto para o seu namorado e que juntos irão pela “estratosfera em direcção a outros planetas”. A arte a imitar a vida pois essa viagem estava prestes a começar.
Aos dezassete anos, com poucos tostões no bolso, Patti ruma para Nova Iorque à procura dos seus sonhos. Os primeiros tempos são difíceis: dorme na rua, rapa frio, passa fome. Mas mesmo com o cão da bílis a morder-lhe o estômago vazio, fica logo deslumbrada com a grande cidade: efervescente, livre, cosmopolita. No obrigatório documentário Dream of Life (realizado por Steven Sebring), ouvimo-la declamar: “Nova Iorque é aquilo que me seduziu / Nova Iorque é aquilo que me formou / Nova Iorque é aquilo que me deformou / Nova Iorque é aquilo que me perverteu/ Nova Iorque é aquilo que me converteu”. Bonita declaração de amor à cidade que adoptou como sua.
Conhece Robert Mapplethorpe e no florido ano de 1969 vão viver juntos para o mítico e decrépito Chelsea Hotel. Aos poucos, Patti vai-se integrando no meio artístico underground de Nova Iorque. Trata por tu os poetas beat, fuma joints com os seus ídolos do rock, pinta, fotografa, escreve, edita os seus primeiros livros de poesia, faz recitais, tudo ao mesmo tempo.
1973 é um ano decisivo: aparece o CBGB. A vanguarda rock nova-iorquina encontra finalmente o seu decadente quartel-general. É naquele mítico tasco com “cheiro a mijo e a cerveja” que nasce o punk e a new wave: Ramones e os Dead Boys, Misfits e os Suicide, Blondie e os Talking Heads, Television e Patti Smith, todos deram ali os seus primeiros passos. E de todos estes nomes incontornáveis da história do rock, Patti foi a primeira a editar um álbum, o influente Horses, nos escaparates das lojas de discos em ’75. Talvez por isso tenha sido sempre considerada a “madrinha do punk”, epíteto facilmente sujeito a mal-entendidos.
Em termos estéticos, é claro que os Ramones foram muito mais beber aos Stooges e aos MC5 do que a Patti Smith. Horses, com as suas canções épicas de nove minutos que gritam por Rimbaud, nunca poderia ser o molde para o divertido minuto e meio de “Now I Wanna Sniff Some Glue”. Se Patti é uma figura tutelar do punk as razões são de outra ordem. Horses é um símbolo de liberdade individual inegociável, uma bandeira de independência artística face aos tentáculos pegajosos das editoras. Num certo sentido, Patti inventou a ética punk.
Vejamos o exemplo da capa icónica do álbum. Quando Patti Smith mostrou a chapa tirada pelo seu amigo Robert Mapplethorpe os homens de fato da sua editora franziram logo o sobrolho. Tudo na fotografia violava as convenções da indústria musical. Em vez do truque reles de explorar a sensualidade feminina para se vender discos como quem vende sexo no açougue de uma montra da red light, a foto é toda ela celebração da androginia, Patti subvertendo todos os códigos de género, com o pormenor do casaco masculino pousado sobre o ombro à Frank Sinatra. Em lugar do habitual aparato técnico de manipulação da imagem, a foto é tirada à luz natural, sem qualquer maquilhagem, com o cabelo cuidadosamente desgrenhado. E por mais pressões que a Arista Records tenha feito para impor outra capa mais comercialmente correcta, Patti não cedeu um milímetro à sua ética do it yourself. Mais importante ainda, ganhou o braço de forças. Uma miúda franzina – vinda da low class de New Jersey – mandando ao tapete a sua adiposa editora. No ano seguinte, o punk rebentou. Não há coincidências.
Paradoxalmente, é na fuga aos estereótipos da feminilidade que reside o poder erótico daquela imagem. O seu ar desafiante e viril tresanda a sexo, homens e mulheres desejando ambos provar o fruto proibido da sua androginia. Em “Gloria”, a mesma ambivalência sexual volta a atrair-nos. Já não é Van Morrison que celebra a tusa pela insinuante “fêmea”. Agora, é uma mulher a narradora, ficando sempre no ar a ambiguidade de se tratar de um amor lésbico. Em “Redondo Beach” regressa o mesmo questionamento das normas sexuais, desta vez em tons sombrios: um casal lésbico tem uma discussão, levando uma delas a suicidar-se, engolida pelas ondas. Mas mais uma vez Patti brinca com as nossas expectativas, vestindo a tragédia com as cores garridas de um quase reggae, uma canção new wave antes do tempo. Com todos estes statements de auto-determinação do corpo feminino Patti acaba por ser uma espécie de Ziggy Stardust ao contrário, uma mulher assumindo o seu lado masculino e tornando-o sexy.
Se ainda estão cépticos em relação à alma punk do disco mando já o trunfo e pronto, para arrumar de vez a questão. Falo, é claro, da frase de abertura do disco, “Jesus died for somebody sins but not mine”, um dos versos mais icónicos de toda a história do rock. Patti teve uma educação profundamente cristã e sempre foi muito ambígua em relação à sua fé, acreditando, renegando, procurando outra vez. Mais do que a negação da fé o que está aqui em jogo é algo de muito mais substantivo: a recusa de qualquer autoridade exterior (religiosa ou não) que se substitua aos ditames da sua consciência. Há uma afirmação célebre em que Patti diz no fundo o mesmo por outras palavras: “Para mim, o punk rock é a liberdade para criar, a liberdade para ter sucesso, a liberdade para não ter sucesso, a liberdade para seres quem tu és. A liberdade.” Numa das suas fotos mais icónicas ela aparece encostada a uma parede rabiscada com a frase Vive l’anarchie. Querem algo mais punk do que isto?
Mas se Horses é punk no coração mas não na bateria o que raio é então? A resposta só pode ser uma: um casamento feliz entre o garage rock e a poesia como nunca antes fora feito. Patti Smith pode não ter sido a primeira a juntar na moulinex o rock’n’roll com a palavra poética. Dylan foi o pioneiro e os Doors de Morrison foram porventura os que levaram mais longe este flirt. Patti não esquece esta dívida e em “Break It Up” presta homenagem ao seu ídolo, cuja morte precoce tanto a perturbou. Na canção, Patti imagina-se perante o túmulo de Jim em Paris, vê-o agrilhoado e exorta-o para se libertar das correntes. Talvez ainda mais significativo, Patti pede-lhe para levá-la consigo. Se Smith honra um dos seus mestres mais importantes, há neste gesto de querer voar com Jim a reivindicação de um novo estatuto, já não a de mera discípula mas sim a de uma igual: artista como Jim, rocker como Jim, poeta como Jim. Com toda a justeza. A originalidade e o vigor do seu álbum de estreia tornam Patti um ícone instantâneo.
A palavra ocupa sempre o epicentro de Horses: palavra-fluído, viscosa e escorreita, escrita directamente do coração para a mão, do coração para a boca, do coração para o sexo. Em “Birdland” – que conta a história de um puto que no funeral do pai olha para o céu e jura vê-lo pilotando uma nave espacial para o salvar – Patti não está a fingir, está mesmo a sentir todo o desamparo e solidão daquela criança. Quando em “Land/Horses” Johnny se sente cercado por dezenas de cavalos esperneando selvagens com as narinas em chamas enquanto é violado Patti não está a representar: está mesmo a sentir a dor inominável daquele adolescente. Desengane-se quem pense que Horses é um disco de fácil digestão emocional. Patti sacrifica-se mesmo por nós, chagas na mão, espinhos na cabeça, da forma como não admitia que nenhum deus-homem o fizesse em seu nome.
A música em Horses nunca é um fim em sim mesmo, é sempre um vassalo ao serviço de sua majestade “A PALAVRA”. Mas com que mestria ela serve o seu amo. Um dos maiores enigmas da história da pop, nunca inteiramente resolvido, é como raio é que a banda de Patti Smith, sempre limitada a uma estrutura harmónica e melódica muito simples (garage rock, pois então) consegue ser tão expressiva. As canções raramente têm mais do que três acordes (é provável que a esta data não soubessem mesmo muito mais do que estes três acordes) mas toda a magia acontece na mais exígua das águas-furtadas.
Talvez o segredo esteja na intensidade com que todos tocam. Ou porventura será o toque de Midas de John Cale que explique o mistério, o único produtor que conseguiu transpor para a fita magnética toda a crueza e espontaneidade das actuações de Patti ao vivo. Ou quiçá a chave esteja simplesmente na gestão brilhante do ritmo, que cresce, explode e abranda ao sabor das flutuações da sua voz indomável.
O disco encerra com “Elegie”, uma canção sombria cuja guitarra fantasmagórica é pós-punk antes do punk. “It’s much too bad that our friends can’t be with us today” são as últimas palavras do álbum. No comovente livro de memórias Just Kids Patti revela-nos que a música “recorda-os a todos, passados, presentes e futuros, aqueles que perdêramos, estávamos a perder e viríamos a perder.” O tema principal de Horses é esse: a morte, o luto, o difícil reerguer. Quando ouvimos o disco também os que perdemos são evocados. Um disco bonito porque verdadeiro e comovente.