Podia começar esta história como começam as histórias das crianças, o tradicional “Era uma vez…” mas não o vou fazer. Primeiro, porque vocês não são crianças. Segundo porque isto faz parte da História, mas não é uma simples história de princesas e reinos encantados, apesar de envolver uma rainha. Adiante. À história.
Já o ano de 1977 estava perto do fim e a explosão do punk em Inglaterra era um dado adquirido quando os Wire lançaram o seu álbum de estreia, este mesmo Pink Flag. Mas a banda de Colin Newman, Bruce Gilbert, Graham Lewis e Robert Grey não veio para ser apenas mais uma na onda, de todo. Enquanto uns gritavam para Deus salvar a Rainha (cá está ela), os Wire vieram para dar um enorme impulso à estética punk, utilizando para isso a sua mentalidade de miúdos de escola de arte através da incorporação de novos ambientes em cada música, do desafio à norma de músicas de 2 minutos (com os Wire cada música tem o seu devido tempo de vida, sejam os 28 segundos de “Field Day for the Sundays” ou os 4 minutos de “Strange”), de inovação perante o vigente. Daí hoje serem vistos mais como a banda que iniciou o pós-punk do que como integrada no movimento punk em si. E fizeram-no de forma ainda subtil com Pink Flag, para depois evoluírem ainda mais com os não menos brilhantes Chairs Missing e 154 que se seguiram.
O arranque de Pink Flag é único e já por si demonstrativo da dissonância existente para com os outros discos de punk que proliferavam. Uma linha de baixo começa a aparecer em crescendo, para pouco depois ser “atacada” pela guitarra. Ao toque de bateria arranca o riff dominante, a construir um clima de tensão, para o qual contribui em muito a voz melódica mas áspera de Newman a narrar os eventos como um correspondente de notícias. Assim é “Reuters”, tensão e alívio, até ao silêncio final após 3 minutos. Punk? ok, é já a seguir – “Field Day for the Sundays” já se enquadra totalmente nesse rótulo, mas, inesperadamente, acaba ao fim de 28 segundos. Claramente este vai ser um disco que nunca saberemos bem o que vai acontecer a seguir, regido pela incerteza. A estrutura clássica de verso/refrão desaparece quase completamente, para os Wire cada música demora apenas o tempo estritamente necessário. O que apenas intensifica cada avanço e retrocesso por ser único dentro de cada música.
“Ex-Lion Tamer” é puro punk. Ritmo, continuidade, tema social (a crescente dependência da sociedade da sua TV). “Lowdown” já é obscuro e não por acaso Pedro Costa foi buscá-la como única música incorporada no seu escuro “Ossos” (Pedro Costa aliás já por várias vezes contou histórias de como ele se dava com os membros dos Wire nos seus primórdios, quando queria era ser músico). “It’s So Obvious” tem lá pelo meio “This is ’77, nearly heaven” e acerta na mouche. O ano de 1977 é muita vezes listado como sendo dos melhores de sempre a nível de música criada e para tal “Pink Flag” contribui. Mais para a frente há uma questão que banda nenhuma de punk toca – o amor, em “Feeling called love”
What is this feeling called love?
What is this crazy thing I can’t explain anyhow?
E no final de tudo há um “12XU” que fecha em grande o álbum, com uma linha de baixo massacrante a destilar tensão para descarrilar no momento seguinte com riffs de guitarra e êxtase total “One two X you!!”
Há poucas bandas vindas do mundo artístico que tiveram sucesso nos meandros da música pop, e que quebraram barreiras perante a norma instituída. Não querendo comparar com, mas sim colar a, há os Velvet Underground e os Wire. Os primeiros não precisam de palavras, os segundos continuam, incrivelmente, a lançar álbuns. E a fazer boa música, apesar de a história os ter devotado ao lugar de ilustres desconhecidos da maioria. Só prova que a maioria não percebe patavina e aceita o que as rádios lhes dão.