Childish Gambino decide abandonar o rap por completo e abraçar a herança de George Clinton, Sly Stone e Prince. “Awaken, My Love!”, o produto final resultante dessa decisão, é um dos álbuns do ano.
Ninguém poderia prever a morte de Childish Gambino. Tossiu “Sober” por alturas de Kauai, mas ninguém faria prever esta febre, este tamanho perecer: quando Ziggy pôs fim ao seu reino e vida, era esta a Soul para o seu Love? As aspas no título do álbum, uma postulação irónica no vernáculo das grandes histórias sobre gente não tão heróica na visão do establishment – “Heroes”? À toa aqui comparações não se fazem. Camaleónico paralelismo, pois Thin White Duke quis “atirar dardos nos olhos dos amantes” e sapiente era de que cairia na paródia se não cantasse do mais poderoso e tocante dos cancioneiros: o negro. Donald Glover (Gambino) é também um filho do som e filhos do som escamarão peles e olharão para os antepassados vergados e atentos.
As tensões embrulhadas a veludo e cetim das melhores slow jams de Prince eram acolchoadas, primeiramente, por grooves exasperando ancas e libertação e, sobre eles deitados, narrações tocantes e trabalhadas de relacionamentos humanos, as caras expressivas por detrás dos arfares e suares, sempre presentes a qualquer ouvinte desejante de explorar mais do que os últimos dois. Num falsete exigente de respeito, Gambino oferece-nos “Redbone”, uma fiel e brilhantíssima homenagem ao que aqui é descrito. Ao ouvido desatento, cantar “my peanut butter chocolate cake with kool-aid(…)” não passaria de descrever uma parelha alimentícia de mau gosto, provocadora de overdoses de açúcar. Conquanto, oleado a sintetizadores borbulhantes e baixo espevitado, o artista nada nos conta senão o desfazamento de uma relação, vítima de incongruências e incompatibilidades – incompatibilidade essa tão vincada como kool-aid e bolo de chocolate.
O brilhantismo de “Awaken, My Love!” encontra-se nesta fascinante reacção aos atritos e dificuldades que o cantor encontra na sua nova paternidade e na relação com a mãe da sua prole. No refrão da mesma música, coros elevam a lasciva canção a uma seriedade incomensurável: Gambino alerta a sua amante que não deverá dormir, que eles se escondem nas sombras e que a irão encontrar. Esta paranóia esquizóide acopla-se constantemente quando fala da sua família e de si próprio: em “Me and Your Mama” é berrado “they wanna see us falling apart”; em “Zombies”, o medo da perseguição e do roubo intelectual por parte destas entidades desconhecidas é tema central e, lenha para a fogueira, uma faixa titulada “Terrified”, onde as “pessoas” querem ver Gambino debaixo de terra. O monstro, numa sensível dicotomia a estes sentimentos, só ganha face em “Boogeyman”: o papão, aterrorizador das crianças e matéria de pesadelos, é cada negro na ponta mortal de uma pistola policial.
É possível então estabelecer um vínculo político-social em “Awaken, My Love!”: na lida dos seus problemas emocionais e tentativa de atingir os seus objectivos e alvos, o preto é obrigado a ser visto como problema e alvo, um papão a abater – algo explorado magistralmente por outros artistas este ano em álbuns como HEAVN, Blonde, A Seat At The Table ou Lemonade. Não é ocasional que Donald Glover abandone por completo o rap neste álbum e se dedique a venerar os grandes da soul psicadélica, do R&B e do funk. Enquanto utilizava rimas e batidas para esmiuçar única e exclusivamente a sua vida de modo um tanto ou quanto umbiguista, os Parliament-Funkadelic, Sly & The Family Stone, James Brown e Prince pontuam musicalmente a sua nova narrativa, motivada pela catarse emocional via deboche e acorde sentido, elo comum a todos estes artistas – não se olhe mais longe que a frenética hiperactividade de “Riot”, onde Glover ulula, logo depois da insegura e assustadiça “Zombies”, “Get down with me!”. Esta nova palete sónica pontua a nova narrativa de Childish Gambino – uma narrativa mais sensível, empática, humana. You need a love that’s gonna last.