A ideia desta Uma Mão Cheia é simples, e explica-se num ápice: fazer referência a 5 discos de músicos que, por força das suas longas e produtivas carreiras, nos pareçam boas e consistentes portas de entrada para um melhor conhecimento dos seus legados musicais. Tudo de uma maneira simples, pouco exaustiva, à medida da voragem dos tempos que correm. A abrir, um nome grande da poderosa história da Música Popular Brasileira: Caetano Veloso, pois claro. O pai do Tropicalismo não ficou por aí, preso a esse passado que continua a insinuar-se nele e em tantos outros artistas do mundo inteiro. No entanto, escolher 5 álbuns de uma discografia que encerra cerca de 5 dezenas de trabalhos, não é coisa fácil, como é fácil entender. Mas isso não nos fez deitar a toalha ao chão, e por isso concretizámos esta discutível proposta, da forma que nas próximas linhas se verá. A caminho, então.
Caetano Veloso (1967): Impossível não escolher este disco. Aliás, trata-se mais de um monumento histórico do que de um disco apenas. O Tropicalismo está todo aqui chapado. Vale por todo o movimento nele começado. Deu-nos, para além das novidades sonoras trazidas por este e por outros baianos (que terão lugar cativo nesta nova etiqueta), canções intemporais. «Tropicália», «Alegria, Alegria», «Superbacana» e «Soy Loco Por Ti, América» ainda hoje agitam os seus encantos, e não perderam nada do que foram e significaram naquele final dos anos 60. Para aqueles que as conhecem, mas nunca ouviram o álbum na sua plenitude, ficam a saber que outras belíssimas surpresas podem por lá encontrar: a delicada «Clarice», a dramática «No Dia Em Que Eu Vim Embora» ou a literária «Anunciação». Um luxo! A começar pela poderosa capa que ostenta. É mpb, é psicadelismo, é tropicalismo, é tudo e ainda mais!
* se gostar deste disco, então ouça também Tropicália ou Panis Et Circenses (1968) e Caetano Veloso (1969)
Transa (1972): Transa é (mais) um disco marcante do genial baiano. Gravado no exílio londrino, ele é bem o reflexo da dor sentida por Caetano por estar longe da sua pátria, dos seus amigos, do sol do Brasil. Tudo o que estava em falta na vida do artista acabou por se transformar numa obra de invulgar quilate. Numa rápida ida ao Brasil (permitida pelo regime que o havia mandado embora para o frio inglês) para assistir às comemorações dos 40 anos do casamento dos seus pais, Caetano foi convidado a fazer uma canção sobre a rodoviária transamazónica, realização emblemática do poder instituído naquela época. Caetano negou o pedido. De volta a Inglaterra, compõe Transa, que é um dos mais inovadores e inquietantes discos da história da música do país irmão. Todas as suas 9 canções são eternas. Basta lembrar 3: «Nine Out Of Ten», «Triste Bahia» e «It’s a Long Way».
* se gostar deste disco, então ouça também Caetano Veloso (1971)
Bicho (1977): A ida a Lagos, na Nigéria, revolucionou a cabeça de Caetano. Os ritmos e os sons de África e os sons e os ritmos da Bahia confluiram, e deram lugar a uma explosão de sobriedade engenhosa, plena de inventividade e bom gosto. A juju music mexeu com Caetano, e Caetano mexeu com o que se fazia no Brasil inteiro. Quem nunca ouviu Bicho (que tanto marcou a minha juventude, ao ponto de ter um programa de rádio de minha autoria com esse mesmo nome) não pode dizer que conhece o mestre baiano. «Odara», canção de abertura do LP, livre nos versos e nos gestos festivos que promove (Deixa eu dançar / Pro meu corpo ficar odara / Minha cara / Minha cuca ficar odara / Deixa eu cantar / Que é pro mundo ficar odara / Pra ficar tudo jóia rara / Qualquer coisa que se sonhara / Canto e danço que dará) traz um ambiente de festa indígena que não se esgota em si mesma, acabando por se verter por todo o disco. Os maiores destaques, no entanto, vão para as supremas «Um Índio», «Tigresa» e «O Leãozinho», clássicos absolutos de Brasil e do mundo.
* se gostar deste disco, então ouça também Jóia (1975) e “a outra metade” que é Qualquer Coisa (1975)
Cinema Transcendental (1979): Cinema Transcendental foi um enorme sucesso na carreira de Caetano. O conjunto de robustas e sumarentas canções que dele fazem parte justificam esse ganho, que tão poucas vezes aconteceu nas primeiras décadas da existência musical do mano Caetano. Na capa do disco, Caetano mostra-se de costas, deitado numa praia de imenso areal, olhando o mar. Que bela metáfora para quem sempre virou costas ao passado, para quem sempre soube fugir à repetição, negando-se a fazer dois discos iguais! A novidade que este Cinema Transcendental nos dá é tanta e tão intensa, que todo o álbum é ensolarado, radiante, pulsante de vida em cada poro de som, em cada canção. Em conjunto, Caetano e A Outra Banda da Terra (melhor naipe de músicos que alguma vez acompanhou o artista) apresentam «Menino do Rio», «Trilhos Urbanos», «Beleza Pura», «Lua de São Jorge», «Oração ao Tempo», «Cajuína», entre outras canções superlativas.
* se gostar deste disco, então ouça também Outras Palavras (1981) e Cores, Nomes (1982)
Estrangeiro (1989): a década de 80, que tão bons discos viu Caetano fazer – como é o caso de Uns (1983), que ainda hoje é o preferido do artista – termina com Estrangeiro, radical mudança sonora na sua obra, depois continuada no disco seguinte, Circuladô (1991). No fim da canção que abre o álbum, Caetano canta, em inglês, os versos “Some may like a soft brazilian singer / but i’ve given up all attempts at perfection“, atravessando-se a meio da prosa de Bob Dylan, que no encarte do seu Bringing It All Back Home (1965) escreve «my songs’re written with the kettledrum in mind/a touch of any anxious color. un- /mentionable. obvious. an’ people perhaps / like a soft brazilian singer . . . i have / given up at making any attempt at perfection…» Caetano está mais ligado ao mundo do que nunca, o seu som internacionaliza-se. Caetano está mais crú. Mais brigão. A presença de Arto Lindsay como produtor foi, nesse sentido, de extrema importância. Estrangeiro é, por tudo isto, um enorme triunfo artístico.
* se gostar deste disco, então ouça também Circuladô (1991) e Circuladô Vivo (1992)
Finda a escolha dos cinco discos, melhor seria ter escolhido outra mão cheia deles para aqui figurarem. Esse é um problema constante quando estamos na presença de génios, e nesse particular Caetano Veloso é o génio maior. Nas décadas mais recentes, o mestre de Santo Amaro da Purificação e do mundo inteiro soube sempre manter-se no topo da sua forma e da sua atitude artística. Não vacila desde o começo, e isso é sinal de garantia de futuro. Na sua sétima década de vida, Caetano Veloso não para de nos surpreender. Ainda bem. Todos os outros grandes nomes da música popular brasileira já estacionaram o seu brilhantismo há muito. Caetano não. Não consegue. Está-lhe no sangue que ainda pulsa, que ainda vibra. Por isso será mais eterno do que qualquer outro.