Ao segundo texto, o grande Milton Nascimento! Mais uma tarefa hercúlea e ingrata! Não adianta queixar-me, uma vez que eu próprio ditei as regras: uma mão cheia de discos numa discografia longa e superlativa, como todos sabemos, é missão quase impossível, mas também por isso mesmo não deixa de ser encargo apetecível. Conheço todos os trabalhos de Milton, ouvi-os vezes sem conta, e a primeira constatação a fazer é sublinhar a sua sólida obra, feita de talento, inspiração, trabalho e génio. Nesta escolha, como na primeira (a de Caetano Veloso, que pode ser lida aqui), só tenho em conta álbuns de estúdio, o que faz com que fique de fora um disco como Milagre dos Peixes ao Vivo (1974), registo importantíssimo, histórico, um dos melhores da música popular brasileira nessa categoria, digamos assim. Mas também os belíssimos Milton ao Vivo (1983), A Barca dos Amantes (1986), O Planeta Blue na Estrada do Sol (1991), Os Tambores de Minas (1998), Uma Travessia – 50 Anos de Carreira ao Vivo (2013), entre mais alguns. Mas vamos ao que interessa. Há uma mão cheia de discos à espera de serem referidos, pelo que é tempo de seguir em frente.
Milton (1970): É o disco mais antigo desta lista, mostrando um Milton ainda em crescimento, mas já com uma segurança impressionante na qualidade das composições e das interpretações, por isso não é de estranhar a existência de canções como «Para Lennon e McCartney», «Amigo, Amiga», «Clube da Esquina», «Durango Kid» (a minha preferida de todo o disco), «Canto Latino» ou «Alunar». As famosas parcerias de Milton com Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Lô Borges e Toninho Horta mostram-se aqui em estado de pureza e delicadeza apreciáveis. Milton é um disco marcado pela experiência que o músico havia tido com o cinema de Ruy Guerra, bem como com um documentário sobre o mítico Tostão, craque jogador do Cruzeiro Esporte Clube, do Vasco da Gama e da Seleção Brasileira. Da banda sonora do filme do cineasta moçambicano, Milton trouxe para este seu quarto álbum os temas «Maria Três Filhos» e o já referido «Canto Latino». Nota também para a belíssima capa feita por Kélio Rodrigues, mostrando a figura do artista como se fosse um rei negro. Uma obra maior, do princípio ao fim. Sem falhas.
* se gostar deste disco, então ouça também Milton Nascimento (1969) e Milton Nascimento (1967).
Clube da Esquina (1972): É impossível conhecer a longa história da música popular brasileira sem pensar imediatamente em Clube da Esquina. É um dos melhores discos de sempre, e também dos mais importantes pela nova estética que trouxe e que tanto influenciou, e influencia até hoje, inúmeros músicos do país irmão. A Banda Dônica é apenas o exemplo mais recente do que afirmo. Para além de tudo o que se possa dizer sobre este disco, convém perceber tratar-se de um disco coletivo, que só poderia ter surgido do imenso caldeirão de talento cozinhado em Belo Horizonte nos anos 60. Mais ainda: trata-se de um disco-movimento, reunindo um enorme conjunto de grandes artistas que fundem bossa nova, jazz e rock (tendo os Beatles como referência maior), sendo que o produto final soa como nunca algo tinha soado assim. A par dessas influências maiores, outras coexistem e são de extrema importância: a música hispânica, a música erudita e o folclore dos negros dão o toque final a esse tremendo monumento sonoro que é Clube da Esquina. O disco representa, enquanto mostra de um movimento novo, o mesmo que representou o álbum Tropicália ou Panis Et Circencis (1968) para os tropicalistas. No entanto, se fosse vantajosa a comparação entre ambos os discos (que não é, diga-se, embora possa ser feita neste contexto) Clube da Esquina ganharia a contenda, pelo disco em si mesmo, pela qualidade intrínseca das suas canções (trata-se de um álbum duplo, ao contrário do disco de 68, de apenas 38 minutos de duração, que é, mesmo assim, convém dizer-se para que não se entenda mal o que afirmo, uma obra absolutamente fantástica), pela unidade plena dos seus 21 temas, pelos êxitos históricos que encerra. Se dúvidas existissem, aqui vos deixo um rol de canções intemporais, para que avaliem a grandeza de Clube da Esquina: «Tudo Que Você Podia Ser, «Cais», «O Trem Azul», «Nuvem Cigana», «Cravo e Canela», «Dos Cruces», «Um Girassol da Cor de Seu Cabelo», «San Vicente», «Clube da Esquina Nº2», «Paisagem da Janela», «Um Gosto de Sol» e «Nada Será Como Antes». Será preciso dizer mais? Claro que não. Uma referência ainda à icónica capa do disco. Os meninos Cacau e Tonho foram fotografados à beira de uma pequena estrada, nas proximidades de Nova Friburgo, sem darem bem conta disso. Só passados 40 anos tiveram consciência das suas presenças em tão importante obra da música popular brasileira. É uma história incrível e comovente, que facilmente pode ser lida nos ares da net, acaso a vossa curiosidade vos leve à procura dessa narrativa. Vale bem a pena, garanto-vos.
* se gostar deste disco, então ouça também Clube da Esquina 2 (1978).
Minas (1975): É dito no disco, em jeito de agradecimento, que um menino de nome Rúbio terá juntado as primeiras sílabas do nome do artista, acabando por formar assim o título do álbum. Simples e poético, como é também, à sua maneira, este Minas. O álbum abre com a instrumental «Minas», canção de Novelli, embora com a inclusão incidental de «Paula e Bebeto», de Milton e Caetano. Melhor começo seria impossível! Segue-se «Fé Cega, Faca Amolada», com a voz de Beto Guedes a lembrar o timbre de Elis Regina, que tantas vezes a cantou também. Outro grande momento de Minas surge na quarta faixa. Chama-se «Saudade dos Aviões da Panair (Conversando no Bar)» e desde o instante inicial, desde os primeiros acordes, que essa canção me enternece. Sempre foi assim. E os versos «Morri a cada dia dos dias que eu vivi / Cerveja que tomo hoje é apenas em memória / Dos tempos da Panair / A primeira Coca- Cola foi me lembro bem agora / Nas asas da Panair / A maior das maravilhas foi voando sobre o mundo / nas asas da Panair» vivem comigo, bem guardados, desde que me conheço. Que grande canção! Mais uma das muitas da dupla mágica Milton / Fernando Brant. Como se não bastasse, Minas tem a canção de Milton que eu mais amo. Abre o lado B do álbum e dá pelo nome de «Ponta de Areia». É um clássico absoluto, canção mais que perfeita, inúmeras vezes gravadas por Milton e por muitos outros músicos, mas que nunca apareceu de forma tão resplandecente como aparece aqui. O saxofone soprano de Nivaldo Ornelas e um coro de meninos (a voz do pequeno Rúbio faz parte do coro) introduzem a canção, e o paraíso passa a ter a forma desta canção. Depois, depois tudo é história e poesia: «Ponta de areia ponto final / Da Bahia-Minas estrada natural / Que ligava Minas ao porto ao mar / Caminho de ferro mandaram arrancar / Velho maquinista com seu boné / Lembra do povo alegre que vinha cortejar / Maria fumaça não canta mais / Para moças flores janelas e quintais / Na praça vazia um grito um ai / Casas esquecidas viúvas nos portais». Lá mais para o fim de Minas há ainda «Idolatrada» e «Paula e Bebeto», outros momentos maiores do disco. Até que termina com «Simples», que se inicia assim: «Olha / A volta do rio / Virou a vida / A água da fonte / Nossa tristeza / O sol no horizonte / Uma ferida». Lembram-se que vos dizia que Minas é um disco poético? Pois é bem verdade!
* se gostar deste disco, então ouça também Geraes (1976).
Journey To Dawn (1979): De todos os 5 discos que aqui vos proponho, este é seguramente aquele que muito dificilmente seria mencionado por outro qualquer artigo que pretendesse mostrar os melhores discos de Milton Nascimento. Tenho perfeita noção disso. No entanto, não se julgue o que acabei de escrever pela qualidade de Journey To Dawn. Nada disso. O álbum é fantástico, mas não deixa de ser um trabalho um pouco à margem dos seus outros discos de estúdio, uma vez que foi gravado para o público norte americano como tentativa de difundir o músico nesse mercado bem a norte do seu espaço natural, daí que apresente temas já gravados por si anteriormente, bem como por outros artistas brasileiros. Canções como «Maria, Maria», «Paula e Bebeto», «O Cio da Terra», «Pablo», «Pablo II» e «Maria Três Filhos» são bons exemplos da excelência das canções presentes em Journey To Dawn. Mas há, sobretudo, o tema «Unencounter», canção originalmente feita em inglês, e só depois vertida para português com o título «Canção da América», um dos mais conhecidos temas de Milton e de toda a música brasileira, gravado com esse título um ano mais tarde no esplendoroso Sentinela, de que trataremos já a seguir. Fiquemos, por enquanto, em Journey To Dawn para melhor justificar a sua inclusão neste pequeno lote de discos. As roupagens dadas por Milton às conhecidas canções apresentadas no álbum são de uma mestria sem par. As línguas inglesa e portuguesa misturadas pela voz de Milton resultam maravilhosamente. E, por fim, refiro (quase sem explicitar, é certo) que a descoberta de Journey To Dawn marcou um período singular da minha vida. Um período de perda que dificilmente esquecerei… Embora suavizada pelo disco em questão, Journey To Dawn é, simultaneamente, um álbum amargo (pela memória trágica do acontecimento), mas também doce (pelo bálsamo cicatrizante que representou para mim). É-me sempre complicado referir-me a Journey To Dawn, pelo que será melhor não acrescentar nem mais uma palavra ao que já vai escrito.
Sentinela (1980): Os anos 80 começaram da melhor maneira para Milton Nascimento. Sentinela é uma obra como poucas. Vibrante, intensa, política sem ser panfletária, humanista, libertária nos propósitos que encerra, poética, miltoniana até à medula. É um disco bondoso, embora trate igualmente de assuntos como a guerra e a solidão. Talvez só eu o entenda deste jeito, mas dele tenho esta opinião bem vincada. Celebra, no entanto e acima de tudo, a amizade entre os seres humanos de todas as raças e de todas as línguas. Ainda hoje acho que Sentinela é o melhor presente que pode ser dado a um amigo. Mais do que um disco, Sentinela é um hino que se ouve e nunca mais se esquece. Um hino de uma pátria diferente de todas as outras pátrias que dividem, mais do que unem. Canções como «Peixinhos do Mar», «Tudo», «Sueño Con Serpientes» (com a arrepiante participação de Mercedes Sosa), «Sentinela» (com a voz de Nana Caymmi a elevar-nos a alturas pouco imagináveis), «Caicó», «Itamarandiba» e «Um Cafuné na Cabeça, Malandro, Eu Quero Até de Macaco» fazem de Sentinela outro dos discos da minha vida. Sentinela é um disco que perdura dentro do corpo, depois de ouvido. Traz palavras de uma beleza inaudita, como as do seu tema mais emblemático, a incontornável «Canção da América»: «Amigo é coisa para se guardar / No lado esquerdo do peito / Mesmo que o tempo e a distância digam “não” / Mesmo esquecendo a canção / O que importa é ouvir / A voz que vem do coração». Relembro ainda as palavras de «Itamarandiba», que evocam o poema de Carlos Drummond de Andrade. A canção começa assim: “No meio do meu caminho / Sempre haverá uma pedra / Plantarei a minha casa / Numa cidade de pedra” e termina dizendo que «No caminho dessa cidade as mulheres são morenas / Os homens serão felizes como se fossem meninos». É também esta a mensagem que fica depois de ouvirmos este álbum, uma das mais belas e intrigantes gravações feitas nos mais de 50 anos de carreira de Milton Nascimento.
* se gostar deste disco, então ouça também Caçador de Mim (1981) e ?n?m? (1982).
Espero, naturalmente, que este longo texto vos sirva da melhor maneira possível. Como ponto de partida, eventualmente, ou apenas como forma de recordar um ou outro disco de uma obra verdadeiramente impressionante, que é a de Milton Nascimento. Apesar da minha escolha ter terminado num álbum do início dos anos 80, a verdade é que o velho Bituca nunca parou de gravar excelentes outros discos. Não resisto a mencionar, por exemplo, os enormes Missa dos Quilombos (1982), Encontros e Despedidas (1985), também muito ligado a um período da minha vida em que fiz rádio, movido pela febre pirata desse longínquo tempo, Yauaretê (1987), Miltons (1988), Nascimento (1997) de entre alguns mais. E, já agora, antes que o artigo termine e se perca o ensejo, resta-me aconselhar a leitura dos livros Travessia: a Vida de Milton Nascimento, de Maria Dolores (Editora Record, 2006) e Os Sonhos Não Envelhecem – Histórias do Clube da Esquina, de Márcio Borges, em edição de luxo, com cd incluso, pela Geração Editorial (1996).