Um disco ao vivo que nos remete para o Waits contador de histórias, num bar fumarento a altas horas da noite
Com dois discos de originais no currículo, Tom Waits encontrava-se numa posição estranha (algo que lhe seria familiar o resto da carreira): as suas composições eram aplaudidas e alvo de versões por parte de artistas comercialmente bem sucedidos (como os Eagles, por exemplo) mas a sua carreira enquanto intérprete do seu próprio material ainda gerava dúvidas entre público e crítica.
Entre a sua voz pouco “católica” e o seu estilo de vagabundo, a sua oscilação entre o jazz de bolso e o singer-songwriter mais tradicional, Waits era, já então, inclassificável.
Após Closing Time e The Heart of Saturday Night, o músico decidiu abordar um conceito relativamente novo: pegar no ambiente de jazz fumarento com o qual já vinha experimentando e gravar um disco “ao vivo” que capturasse a essência dos seus espectáculos precários. Nestes, havia tanto de canções como de apartes, tanto de temas completos como de fragmentos poéticos e observações humorísticas, tanto de seriedade como de brincadeira letrada.
E se Waits vinha sendo criticado por ser uma personagem construída num pastiche dos poetas Beat dos anos 50 e 60, a resposta foi mergulhar definitivamente nesse universo, que na verdade sempre foi o seu: um bar fumarento a altas horas da noite, rodeado por mulheres da vida e trabalhadores braçais, com o seu fato de vagabundo outrora bem na vida, a debitar verdades doídas e sarcásticas em cima de um palco.
O músico não quis gravar no célebre Troubador, onde era frequente actuar como número de abertura de artistas mais famosos. Começou por querer fazer o disco num diner, num restaurante de fast-food e baldes de café de beira de estrada, até o produtor Bones Howe lhe explicar as dificuldades de organização e de captação de som num contexto desses. A resposta foi no mínimo original: o estúdio da Record Plant, em West Hollywood, foi totalmente convertido com um cenário de um desses bares, com cabines acolchoadas revestidas de plástico, mesas de café barato e bebidas à discrição.
Foi assim que, em duas noites consecutivas de Julho de 1975, um grupo de amigos e convidados entrou para esse “bar” improvisado, para assistir a um concerto que faria Nighthawks at the Diner, o terceiro disco de Tom Waits, e um dos mais adorados da sua longa discografia.
Em palco, além de Waits, estavam mais quatro músicos: o teclista/arranjador Mike Melvoin e o contrabaixista Jim Hughart, que vinham da equipa que moldou o seu álbum anterior; e juntou-os ao baterista de jazz Bill Goodwin e ao saxofonista tenor Pete Christlieb. O resultado foi um conjunto coeso, esparso, 100% jazz, gerando uma intimidade e uma familiaridade de linguagem que habita toda a fita consumida nessas duas noites.
Os temas que fazem este álbum (duplo, na versão em vinil) oscilam sobretudo entre dois estilos: o jazz swingante de fundo em cima do qual Waits vai lançando o seu rap beat letrado mas humorístico (com inúmeras tiradas inesquecíveis), dando largas à sua vertente de entertainer e de contador de histórias; e as músicas mais “direitinhas”, mais compostas, quase todas de uma grande beleza e sinceridade.
Entre estas últimas podemos falar de “Eggs and Sausage (In a Cadillac with Susan Michelson)”, “Better off Without a Wife” ou “Nobody”, esta última uma das suas grandes baladas de amor. E depois há misturas entre o registo mais canção e o pseudo-improviso mais falado, como “On a Foggy Night” ou a excelente “Big Joe and Phantom 309”, que Waits entrega como quem conta uma daquelas histórias de fim de noite, com o bar quase a fechar, enquanto tratamos daquela que sabemos ser a nossa última bebida, pelo menos para já.
Não contendo grandes êxitos, daqueles de best-of (que no caso de Tom Waits nunca fizeram grande sentido), Nighthawks at the Diner vale pelo seu todo, pelo extraordinário ambiente que cria. As canções não valeriam tanto sem os interlúdios jazzísticos e conversados, da mesma forma que estes não fariam sentido de forma isolada.
Abrir a porta deste diner é encontrar uma casa por uma noite, um abrigo das agruras da vida, onde nos podemos queixar, emocionar e até rir, enquanto uma bebida e uma boa banda jazz nos aquecem o corpo e a alma, antes de enfrentar um novo dia. O toque final está na gravação e na mistura, em que ouvimos o gelo a cair nos copos, talheres a bater aqui e ali, o público a aplaudir e muitas vezes a rir-se, chegando a lançar bitaites para o cantor.
Um clássico da música norte-americana e um disco absolutamente essencial na colecção de qualquer fã de Tom Waits.