Fala-se muito da perfeição de O Bairro do Amor mas esquece-se, demasiadas vezes, da outra obra-prima de Jorge Palma. Sejam então bem-vindos a’O Lado Errado da Noite.
Jorge Palma, sendo um assumido boémio, nunca foi um artista especialmente produtivo. Mas nos anos 80 o seu ritmo criativo foi invejável: cinco belíssimos álbuns de originais, que nos deram muitas das suas canções canónicas. É em 1982 que Palma regressa a Portugal, depois de quatro anos andarilhos a tocar nos metros de Paris e demais esquinas, chapa ganha, chapa gasta, “like a rolling stone”…
Nesse ano, grava o disco-duplo Acto Contínuo, a casa de “Portugal, Portugal” e “A Gente Vai Continuar”. Em 1984, oferece-nos Asas e Penas, trazendo no bico “Estrela do Mar” e “Onde Estás Tu, Mamã (Canção de Lisboa).” Mesmo com toda esta efervescência criativa Jorge Palma mantém-se como um artista de culto: adorado pelos indefectíveis, ignorado pelo grande público.
Essa estranha invisibilidade desapareceria no ano seguinte: O Lado Errado da Noite não só é aclamado pela crítica como “o lado certo do Jorge Palma”, como o single “Deixa-me Rir” dá que falar, assomando na novela “Palavras Cruzadas” e entranhando-se no nosso inconsciente colectivo. A simplicidade do piano doo-wop disfarça a sofisticação harmónica, tornando acessível o que é complicado. Três vezes Pedro negou Jesus, três vezes Palma ascende ao mainstream: “Frágil” (1989), “Encosta-te a Mim” (2007) e “Deixa-me Rir” (1985). Não há amor como o primeiro…

Se os anos 80 são, de longe, o seu período mais inspirado, os seus discos padecem da mesma maleita de tantos outros da mesma época: uma produção datada, com uma bateria inorgânica e arranjos de lobby de hotel. Mesmo assim, O Lado Errado da Noite é, estamos em crer, o Palma dos eighties que melhor envelheceu.
É também coeso e económico: dez tiros, dez melros, só filé mignon. Veja-se a folkie “Cara de Anjo Mau”, todo um manual de como construir uma canção popular perfeita, da melodia encantadora que fica no ouvido, até à letra inteligente e divertida, construindo uma personagem em poucas pinceladas certeiras – os olhos cor de pólvora, o cabelo rastilho, tudo no anjo mau atraindo irrecusáveis sarilhos. Dão-se alvíssaras a quem encontrar em toda a história da pop uma declaração de amor tão deliciosa como “por ti deixava de meter o dedo no meu nariz”…
O falso country de “Jeremias, o Fora da Lei” – com um tal de Rui Veloso na harmónica – perdurou igualmente, em parte porque a personagem e o autor se entrelaçam. Jeremias não está sozinho: também o seu criador “escolheu o seu lugar no lado de fora”, “foragido por amor ao que é belo”. Haverá retrato mais exacto do nosso rebelde favorito?

No noctívago e fumarento tema-título, qual Tom Waits de Xabregas, Palma revela uma terna compaixão pelas suas personagens malditas, pobres habitantes do lado errado do destino. A letra tem uma precisão à Tin Pan Alley: cada estrofe é um riacho diferente, todas habilmente desembocando no mesmo verso-foz, o título da própria canção. Palma tem mão para a coisa…
A orwelliana “Razão de Estado” e a roqueira “O Homem Invisível”, não sendo clássicos tão óbvios, acabariam por ser imortalizadas pela sua inclusão no disco do Palma’s Gang, Ao Vivo no Johnny Guitar, e com toda a justiça. A mesma sorte não tiveram “Há Muito Tempo” (vestindo-se de blues), “Nunca é Tarde Para se Ter uma Infância Feliz” (pincelando distopias), “Fátima” (brincando ao jazz) e “Imaginação” (com enfeites prog), todas adoráveis mas esquecidas pela posteridade – essa puta ingrata, não desfazendo…
Querem aprender a escrever canções transbordantes de verdade e poesia, urbanas até à quinta casa, cheias de gana de viver, e de sadio desdém pela respeitabilidade comezinha? Ouçam então este disco em loop. Até o erro da noite adentrar…