Podemos olhar de duas formas para a vida e para a carreira de Sean Lennon. Filho de John & Yoko, nascido em 1975 em plena fase de Nova Iorque do casal, teve aparentemente tudo o que alguém podia alguma vez querer. Educado nos melhores colégios do mundo (Suíça, Japão e EUA), Sean teve Elton John como padrinho (o seu meio-irmão, Julian, teve nessa posição o mago Brian Epstein), liberdade, meios e incentivo para perseguir todas as suas paixões, académicas ou artísticas. À beira de completar 40 anos de vida, vive em Manhattan com a muito recomendável modelo Charlotte Kemp Muhl com quem tem esta a banda de que vos queremos falar neste artigo.
Sim, Sean teve tudo, e é difícil para alguém que possua alguma consciência de classe não sentir irritação para com este privilegiado. Esta é uma das formas de ver a coisa.
A outra é que se, de facto, Sean teve tudo, a verdade é que não teve uma coisa que, acredito, lhe terá feito muita falta, e fará para o resto da vida: não teve, a partir dos cinco anos, um pai.
Sim, John Lennon, o homem que viveu o nascimento de Sean com toda a profundidade que a vida não permitira em relação ao primeiro filho, Julian, fruto do seu primeiro casamento. Sean não teve mais um pai, desde que um imbecil lunático que não merece sequer ser nomeado assassinou John, em Dezembro de 1980.
Mais do que isso, nunca qualquer artigo ou opinião acerca dele ou da sua arte foi emitido sem referência a esse pai fundador de toda a música moderna. E, digamos, não é fácil sair bem de qualquer comparação com a obra de Lennon Sénior, que se torna inevitável não apenas pelo apelido, mas pelo facto de a voz do filho soar assustadoramente próxima do timbre do pai (já para não falar da cara chapada).
O percurso de Lennon júnior foi, até há poucos anos, errático. Fez de tudo um pouco. Trabalhou como produtor em alguns discos da mãe, Yoko Ono, papel que ainda desempenha hoje em dia; colaborou em discos de Michael Jackson; assinou pela editora dos Beastie Boys e lançou poucos discos em nome próprio, sem grande impacto comercial e críticas divididas que apenas concordavam no facto de Sean não ser, estranhamente, John; juntou-se durante alguns anos ao duo avant-rock japonês Cibo Matto, enquanto baixista; e foi mesmo ‘session musician’, ou seja, músico de estúdio, o tipo de profissional que empresta o seu instrumento e o seu som a um disco, não tendo sequer, muitas vezes, o direito a ser creditado pelo seu trabalho. Dir-se-ia que a vida profissional de Sean foi um misto de investidas a solo sem grande convicção e várias tentativas muito convictas de fazer música debaixo do radar. Até 2006, ano em que conheceu Charlotte Kemp Muhl, modelo então com 18 anos. Começaram uma relação pouco depois e, em 2007, começaram a brincar a fazer música. Kemp Muhl, namorada de Lennon desde então, pode parecer apenas uma cara bonita. Mas um artigo recente da Mojo descreve-a como letrada, culta e assertiva. Nesse mesmo artigo, Kemp Muhl descreve-se a ela e a Lennon como “dois nerds que gostam de ficar em casa e ler livros acerca da Natureza. A National Geographic é a nossa Playboy”, afirma.
É dessa altura a criação destes The Ghost Of A Sabre Tooth Tiger (GOASTT), qualquer coisa como “Fantasma de um Tigre Dente de Sabre”, em português. Mais uma vez, é Lennon a esconder-se atrás de uma banda, uma persona, uma máscara complexa, uma marca diferente. E, em conjunto e com a ajuda de Kemp Muhl, atrevo-me a dizer que, finalmente, encontrou a sua voz. “Encontrar a Char estimulou-me a encontrar-me a mim próprio”, diz ele.
Os GOASTT começaram por gravar Acoustic Sessions, seguindo-se Le Carrote Blue, com algumas músicas em comum. O som, um psych-pop pastoral muito bem construído, com base acústica no primeiro e com um espectro mais alargado no segundo, com toques de chanson e maior corpo e profundidade instrumental. Discos que não deixaram grande marca mas, fica aqui a recomendação, merecem bem uma revisita.
Este Midnight Sun é tudo isso, sim, mas com alguns upgrades. Em primeiro lugar, uma injecção de electricidade forte mas muito bem doseada; cumulativamente a este primeiro passo, um salto decidido e bem consciente para o vulcão – vivíssimo hoje em dia – do psicadelismo, na sua faceta rock mas também folk e progressiva; por último, uma capacidade de composição mais rica, mais complexa, mais labiríntica. Tudo debaixo de uma capa esotérica muito interessante, feita de referências ao antigo Egipto, cultos satânicos ou pacifistas, ecologia, extraterrestres, flower power e filosofia oriental, entre trinta outros elementos visuais e inspiradores.
O resultado é um disco longo e coeso, que vai a muitos sítios sem nunca perder o seu vigor e a sua personalidade. O primeiro choque de Midnight Sun é a voz: apesar de ambos cantarem, é Lennon quem aparece quase sempre a dominar as magnificas harmonias vocais, e é impossível não sentirmos que estamos a ouvir um muito jovem John Lennon. Essa “curiosidade” a início rouba-nos a atenção mas, uma vez dado esse facto como adquirido, podemos finalmente apreciar a riqueza das músicas e dos seus arranjos. Todos os instrumentos – e são muitos – foram tocados pelo duo, e vão desfilando em camadas pelos temas fora. As vozes, homem e mulher, podiam ser harmonias Lennon/McCartney, e soam assim tão bem, de facto. Ouçam “Poor Paul Getty”, excelente e absoluto Beatles de primeira água, fase Revolver; ouçam “Moth to a Flame” e “Last Call”, e aqui temos um cruzamento de sonho entre os Quatro de Liverpool e os Pink Floyd.
O tom geral do disco é de uma viagem por um bosque frondoso; caminhos por entre árvores centenárias, ladeadas por lagos plácidos batidos por um sol oblíquo; pássaros exóticos e animais estranhos espreitando por entre a vegetação e à nossa espera, nas clareiras; e, por cima de tudo isto, um tom ao mesmo tempo surreal, narcótico e totalmente pop.
Um delírio que nos agarra facilmente mas que não deixa de ir tendo sempre novas e boas surpresas com repetidas escutas.
Voltemos ao começo deste texto. Sean está plenamente consciente de que há quem o ame e quem o odeie apenas por ser quem é, mesmo sem escutar o que tem para dizer. A sua resposta, dada à Mojo, é a única que faz sentido: “Acho que as pessoas odeiam os filhos de artistas bem sucedidos. É como se já tivesses feito algo de errado assim que nasces. Mas, sabes, eu não fico sentado a sentir pena de mim próprio. Eu sei que sou um privilegiado por poder fazer música”.
E o resto, como se diz, é conversa. Ou, neste caso, música. Midnight Sun é um excelente disco de um psicadelismo profundo e envolvente, e toda a mitologia à volta dos seus autores só ajuda à fantasia.