É o seu sentido poético que ordena tudo com elegância e sensibilidade. Não é jazz ou electrónica, é poesia e nada mais.
Shabaka Hutchings não sabe ficar parado; o jazz londrino agradece. Quando acorda em transe com uma crise tribal vai logo gravar como Sons of Kemet. Depois do almoço, sentindo-se mais contemplativo, repousa um pouco como Shabaka and the Ancestors. O pior é quando se levanta a meio da noite com uma futurite aguda, não lhe restando outra alternativa senão aliviar-se enquanto The Comet is Coming. Os sintetizadores espaciais e a bateria quase mística acalmam-lhe de imediato o saxofone.
O resultado é um jazz espiritual na tradição do Love Supreme do Coltrane, uma tentativa de compreensão do mistério do mundo. No primeiro álbum, Channel the Spirits, a improvisação atonal desbragada impedira o caminho da revelação. Agora, com a beleza ordenada de Trust in the Lifeforce of the Deep Mystery, chegou por fim a luz. Só a poesia abre as últimas portas.
Influenciados pelo space jazz de Sun Ra, desdenham a estreiteza do presente, espraiando a imaginação pela lonjura do futuro. Mas os milénios que hão-de vir são estranhamente saudosistas, pincelados com as cores quentes e orgânicas do passado. Daí o recurso a uma electrónica arcaica, a dos velhos sintetizadores analógicos com que os King Crimson e os Can desenhavam os anos 70; ou os baixos 808 “pato de borracha”, tão em voga nos eighties, no tempo em que as máquinas ainda falavam. Mais moderno é o diálogo com o grime, pedindo-lhe emprestado as suas batidas rápidas e nervosas, moderando assim os excessos retro-futuristas do bicho.
A lógica é sempre a do pós-moderno “vale tudo menos arrancar olhos!”, enfiando o século XX no novo milénio, o jazz no rock psicadélico, o prog na música clássica russa. O tempo é habitualmente lento e contemplativo, como um mar calmo ondulando devagar. Por vezes, um clarinete elegante finge mesmo ser o senhor Mussorgsky, visitando, seráfico, os quadros de uma exposição. Mas quando Shabaka é picado pela mosca Fela Kuti o saxofone explode enlouquecido, qual punk africano para o século XXXI. Os vizinhos nem sempre apreciam.
O resultado final é estranhamente harmonioso, provando que é possível reagrupar blocos de tradições muito díspares num todo coerente. É o seu sentido poético fora do comum que tudo ordena, com elegância e sensibilidade. Não é jazz ou electrónica, é poesia e nada mais.