Free é um disco de fim de caminho, um álbum inteligente feito por alguém que sabe em que momento da vida se encontra. Iggy Pop merece tudo. Resta saber se os ouvintes sabem merecer Free.
O bom guerreiro está de volta. Falamos de um veterano de guerra, de um homem que deu o corpo, a alma e (quase) a vida por aquilo em que sempre acreditou: o rock. Falamos, naturalmente, de Iggy Pop, autêntica lenda viva da música com mais de 50 anos de carreira e de estrada. Mas o tempo passa e o caminho continua a fazer-se andando, umas vezes com mais certezas e forças (Post Pop Depression é o último bom exemplo disso), outras vezes parecendo não se saber bem onde colocar o passo seguinte. Não é bem este o caso de Free, mas a ideia de alguma indefinição artística é algo que nos pode vir à cabeça numa primeira audição do disco, que por poder ser inconclusiva, convém não ser definitiva. Por isso, e sobretudo pelo respeito que o nosso querido idiot nos merece, resolvemos rodar Free uma boa dezena de vezes para ver o que dali poderia sair. Saiu um dos discos mais curiosos de Iggy Pop dos últimos tempos, embora partido a meio, revelando duas faces de um mesmo artista. Mas, para sermos sérios, nenhuma dessas duas caras é absolutamente surpreendente, antes pontas soltas deixadas por trabalhos antigos, retomadas agora com alguma coerência e inteligência. É que a idade não perdoa, e “o corpo é que paga”.
Há em Free duas metades distintas, embora com pesos diferentes na economia do álbum. Como se o disco propriamente dito devesse ter apenas as 7 primeiras faixas, sendo as restantes 3 algo totalmente diferente e bem à parte. Se nessa primeira fatia sonora temos canções, na última temos um bonito exercício de spoken-word. Os mais distraídos franzem o sobrolho, desconfiados, ao ouvirem “We Are The People”, “Do Not Go Gentle Into That Good Night” ou “The Dawn”, provavelmente por nunca terem passado os ouvidos pelo já distante Avenue B (1999), ou por se terem esquecido desse injustamente mal recebido trabalho da velha iguana. Mas nós temos boa memória e por isso aceitamos bem que 20 anos depois Iggy Pop queira de novo percorrer uma avenida um pouco afastada e paralela àquela que teimou em percorrer durante quase toda a sua vida. Iggy Pop estará cansado? A essa pergunta, a resposta mais afirmativa tem o tom de nova questão: como não estar? Falamos de Iggy Pop, e não de um qualquer finório da história do rock que nunca vendeu a alma ao diabo. Iggy Pop, é bom não esquecer, já viveu muitas e intensas vidas. É natural que precise de algum sossego.
As primeiras 7 faixas de Free, como já fomos dizendo, são canções que ecoam a tempos e aspetos diferentes. Há uma, em particular, que soa aterradoramente ao seu grande e bom amigo David Bowie dos últimos tempos. Ouçam “Sonali” e digam lá se não temos razão. Mas comecemos pelo princípio, que é sempre uma boa maneira de começar. “Free” mostra muito do que é o disco, e a frase / verso repetido (“I wanna be free”), mais não é do que a prevalência concreta de uma vontade, coisa que o disco, de facto, concretiza: a vontade de fazer o disco que muito bem entende, sem estar amarrado à imagem que lhe está colada ao corpo. Cansado de acelerar, Iggy Pop resolveu reduzir a cilindrada, e canções como “Loves Missing”, a já referida “Sonali”, “Glow In The Dark” e “Page” (tão íntima e bonita que chega a doer) são o melhor exemplo disso. Mas não é tudo. O tremendo charme de “James Bond” é o grande trunfo do álbum, e uma das melhores canções a que Iggy Pop alguma vez emprestou a sua voz com maior sabedoria.
Para aqueles que gostam de escutar influências naquilo que vão ouvindo, esses bem podem esfregar as mãos de contentamento com Free. O óbvio som jazzístico do trompete de Leron Thomas remete para temas de Préliminaires (2009), mas algumas dessas canções pontuadas pelo instrumento de Leron fazem lembrar Bowie (sobretudo o Bowie derradeiro de Blackstar), ou até mesmo os Joy Division (não no ritmo, mas nas sombras, na frágil luminosidade que percorre quase todo o álbum). Começámos por afirmar que Free é um álbum partido em dois: verdade, sobretudo se pensarmos nos formatos dos temas que comporta. No entanto, se tivermos em conta o sentido dos textos, Free é uno e bem sólido na sua construção.
Free não deve ser julgado de ânimo leve. Não é um disco preguiçoso, como alguma imprensa internacional referiu sem hesitação. Isso seria muito redutor para o trabalho de um homem que canta os seguintes versos no tema “Page”: “And I’m to you just an artifact / And still you blame me for the soundtrack / All I can do is sigh / All you can do is cry / ‘Cause wolves and sheep do rest / Not side by side, still, they rest”. Para bom entendedor, estes versos bastam. Para quem não os conseguir descodificar, resta apenas um caminho: chorem o tempo perdido com Free e peçam ao deus Iggy Pop (santa ingenuidade!) o milagre de o trazer de novo à eletricidade que tanto desejam. Nós, no entanto, pensamos que esse momento não mais regressará, de tão forçado e postiço que seria. Deixem-no em paz, que ele bem merece! Deixem-no livre de fazer o que pode e de fazer o que é ainda capaz, o que já não é pouco.