Imyra, Tayra, Ipy é um assombro! Um disco verdadeiramente único, um autêntico ovni que surgiu no panorama da MPB em 1976, para ir desaparecendo quase sem deixar rasto.
Se houvesse um campeonato do mundo de instrumentistas escalados para um só trabalho, os que participam neste disco seriam fortíssimos candidatos à glória final. Estou convencido que ganhariam por KO técnico a qualquer outro time que com eles tivesse de fazer frente. Ora vejamos, mesmo sem ter a pretensão de referir todos os titulares: Hermeto Pascoal (flauta), Toninho Horta (violão e guitarra), Nivaldo Ornelas (saxofone), Wagner Tiso (no piano, e que por mim teria a braçadeira de capitão de equipa), Novelli (baixo), Paulo Braga (bateria) e Jaques Morelembaum (violoncelo) são sinónimo de garantia absoluta. Que equipa ganhadora! Se juntarmos a voz e as composições de Taiguara ao lote acima mencionado, o melhor é entregar-se já a Taça.
Dos catorze temas do disco, apenas um não é de Taiguara Chalar da Silva, músico e compositor nascido no Uruguai, mas que fez do Brasil a sua terra adotiva. Essa exceção é “Três Pontas”, primeira canção do primeiro longa duração de Milton Nascimento, feita em parceria (e que parceria, meu Deus!!!) com Ronaldo Bastos. Todas as outras treze canções de Imyra, Tayra, Ipy são dele, e são portentosas!
Tenho por este disco um carinho quase umbilical. O meu nascimento para a música popular brasileira deu-se (também) com este álbum, que era tão difícil de encontrar em Portugal nos anos oitenta. Por isso andei com ele durante largo tempo metido numa cassete BASF verde (LH Super I, se não me falha a memória) a fazer de banda sonora da minha jovem existência musical, a par de Caetano, Chico, Milton, Gil e outros deuses igualmente cultuados por mim. Mas, no fundo, mais do que uma ou outra memória partilhada, importa referir que Imyra, Tayra, Ipy é um disco histórico, não apenas pela sua genial qualidade, mas também por ter sido um marco triste (como outros foram também, bem entendido) numa outra história, a da relação entre a censura brasileira e a música que no país irmão se fazia. Um pequeno exemplo do que digo: o disco foi completamente banido das lojas apenas 72 horas após ter sido lançado. A razão? Taiguara já era há muito um dos alvos preferenciais dos censores, encontrando neste trabalho, que marcava o seu regresso do exílio em Inglaterra, vários ecos de combate às ditaduras militares de toda a América Latina. Canções como “Público”, “Terra das Palmeiras”, “Como em Guernica” ou “Situação” servem como bons exemplos para que a censura tivesse torcido o nariz ao álbum e ao artista, uma vez mais.
Imyra, Tayra, Ipy é um disco que contempla, na sua génese criativa, uma boa dose de experimentalismo composicional, sem que, no entanto, se esforce por renunciar à vertente melódica, aliás claramente presente em todos os catorze temas que dele fazem parte. No que diz respeito ao conceito que está na sua base, a figura do indígena ganha óbvio destaque. Logo pelo título isso se torna claro. Imyra (árvore, madeira, pão), Tayra (filho), Ipy (foro, livre, senhor de si) é, portanto, porta voz assumido de uma visão miscigenada da nação brasileira e da sua origem humana e cultural. Faz referências ao passado e questiona o presente de forma bastante assertiva, quando Taiguara canta, por exemplo, versos como “Sonhada terra das palmeiras / Onde andará teu sabiá? / Terá ferido alguma asa? / Terá parado de cantar?” (“Terra das Palmeiras”). Ou como ainda em “Outra Cena”, nos versos “A grana o gado o ladrão / O pau o podre o país / Amado o medo a matriz / Só não sofreu / Quem não viu / Não entendeu / Quem não quis”.
A ditadura, de mão bem férrea nos anos setenta, entendeu, e não quis que o povo brasileiro ouvisse o que Taiguara tinha para lhes dizer…