O título Jane Birkin/Serge Gainsbourg diz tudo, uma colaboração entre a actriz inglesa e o iconoclasta francês onde celebram, com requinte e lascívia, a sua turbulenta paixão.
O génio de Gainsbourg precisa de musas para acender. Brigitte Bardot deu bom carvão (Bonnie & Clyde; Initials B.B.) mas a sex symbol acabou por regressar ao seu marido, escangalhando o coração do pobre Serge. Não faz mal, Jane Birkin consertou-o num ápice, como não? Jane B., a actriz e modelo inglesa dezoito anos mais nova; ele quarentão, ela vinte e dois, que o amor não tem bilhete de identidade, só tesão.
Conheceram-se em ’68 na rodagem de um filme e depressa a bela menina e o monstro charmoso apaixonaram-se. Fizeram então um disco a meias, chamado simplesmente Jane Birkin/Serge Gainsbourg, de ’69, placard de néon anunciando ao mundo o seu ardor. Ele escreve todas as canções, ela canta em metade, mas só Jane assoma na capa (um peito em chama é generoso).
As melodias são imaginativas, prenhes de sentido pop e embrulhadas com gosto: baixo espesso, guitarra ácida, arranjos de cordas tão elegantes como depurados. As letras não ficam atrás, ora brincalhonas e perversas, ora solenemente trágicas. O sentido de humor não está só nas palavras, a própria música é por vezes burlesca, quase desenho animado. E depois vem o trunfo secreto, a tensão sexual. Ainda está por contar quantos foram os milhões de bebés concebidos ao som deste disco…
Gainsbourg bebe muito e é preguiçoso, dava muito trabalho escrever onze novos temas, de maneira que regravou cinco, o velhaco. Justamente o que aconteceu à sua canção-assinatura, a infame “Je T’Aime… Moi Non Plus”, já antes gravada com Brigitte Bardot (mas nunca publicada, a seu pedido, para não alimentar ainda mais o escândalo à volta do affair). Jane foi o “pneu sobresselente”, e ainda bem, que o seu falsete inocente de capuchinho vermelho contrasta na perfeição com o barítono do lobo mau Serge. A respiração ofegante e prazerosa de Birkin causou um escarcéu dos diabos, sempre fora essa a intenção de Gainsbourg, aliás. O Vaticano benzeu-se, as televisões e rádios baniram, Serge agradeceu a publicidade gratuita. Resultado: um sucesso estrondoso pela Europa fora, chegando o single ao lugar cimeiro do top britânico. A geração do Maio de 68, a da libertação sexual, fez dela seu hino e bandeira.
“Les Sucettes” já antes tinha sido oferecida à naive France Gall. Um presente envenenado, que o trocadilho à volta da palavra “chupa-chupa” – o qual Gall sempre alegou não ter compreendido! – não foi benéfico para a sua carreira. A sua melodia quase infantil apimenta ainda mais o duplo sentido. Graçolas pimba para gente letrada, também têm direito…
“Sous le Soleil Exactement” a mesma coisa, oferecida antes a Anna Karina, repescada agora pelo indolente Serge. Um falso doo-wop, pegando na sua progressão de acordes mas levando-o para um sítio completamente diferente. Sabe a sol e a brisa do mar; porém, as pausas entre trechos melódicos criam momentos de tensão, o equivalente estético a um protector solar.
Já “Elisa” integrava a banda-sonora do filme “The Horizon”, foi só preciso acrescentar palavras ao instrumental. O registo é auto-irónico, a bela e o monstro revisited: “Elisa / saltou ao meu pescoço / procura piolhos / crava as suas unhas / e dedos delicados na selva do meu cabelo / faz-me coisas inglesas”. Gainsbourg driblando as sílabas como poucos.
Sucede o mesmo com “Manon”, reciclado da banda-sonora do filme “Manon 70”, talvez o tema mais forte do disco, denso e escuríssimo, apontando a direcção para o tomo seguinte, a obra-prima Histoire de Melody Nelson.
Depois vêm os temas inéditos, de alfaiate, feitos à medida de Serge e Jane. “Orang Outang” regressa à auto-ironia, através da voz de Birkin: “amo o meu orangotango / nunca durmo sem ele / já não tem dentes / mas com o tempo aprendi a gostar deste grandalhão repelente”.
“69 Anée Érotique” é quimbarreiresco no trocadilho fácil mas tudo o resto é tão belo e sofisticado que lhe perdoamos o plebeísmo.
“Le Canarie Est Sur le Balcon” é sombria e dissonante como o suicídio que descreve: “antes de ligar o gás / ela pensa no seu canário / antes de acabar de uma vez por todas com a vida / ela vai buscar a gaiola / o vento gélido do Inverno dá-lhe arrepios / ela abre o gás / e deita-se na cama / no gira-discos o seu disco favorito / agora vai perdendo a razão / vê estranhas flores e borboletas” Nada de estranhar. O sexo e a morte sempre foram as grandes obsessões gainsbourguianas.
“Jane B” é igualmente mórbida, Serge imaginando a sua Birkin assassinada à beira da estrada, e descrevendo os seus dados forenses: “olhos azuis / cabelos morenos / inglesa / sexo feminino / 21 anos de idade”. A melodia foi roubada a um polaco, um tal de Chopin, prelúdio em não sei quê menor, opus não sei quantos; um furto com uma classe do caraças…
“18-39” é um olhar amargo para o intervalo entre as duas guerras mundiais: “todos os que dançavam não estão aqui agora / estão mortos / enterrados / despedaçados”. Só que a música vai no sentido contrário – “cartoonesca” e festiva, com o seu piano de saloon eufórico -, gerando um estranho curto-circuito no cérebro.
Um disco roçando a perfeição, doce e perverso, espirituoso mas trágico, sensual e risível ao mesmo tempo. Encham o cálice com bom vinho. Queremos fazer um brinde convosco. Às canções maiores do que a vida! Só elas sobreviverão…