Há poucas sensações como a de entrar num clube nocturno onde sons maravilhosos e sobrenaturais saem do palco, um arco de escuridão à volta da luz que vem do fundo. Como entrar numa cripta onde todos os mistérios se revelam e todos os males são expurgados, a memória sempre a idilizar a imagem da noite – a viagem – de uma vida.
São assim os concertos dos Sensible Soccers. Na passada sexta-feira, no Musicbox, os músicos nortenhos regressaram à capital que sempre lhes deu muito amor para apresentar o mais recente disco, Villa Soledade. “Clausura” e a “Villa Soledade” foram os dois primeiros temas que o quarteto tocou para a plateia esgotada. Tentámos então perceber o porquê – já que tanta gente os queria ver – da maioria dos presentes passar o tempo todo a gritar aos ouvidos uns dos outros, aos empurrões num entra e sai constante, às incessantes idas ao balcão para aproveitar o whisky grátis que mal enchia o fundo do copo.
Tentámos abstrair-nos de tudo isso e “Bolissol” ajudou-nos, com as suas cordas melosas e brilhantes, a sua lentidão compassada, as suas batidas suaves mas que abriam a terra ao meio, a dose certa de experimentação e êxtase, o equilíbrio perfeito entre a banda de casamento e a de rock progressivo e electrónica.
Logo a seguir viria a obrigatória “AFG” – a única fora do baralho do álbum deste ano. Viria aquela que nos faz sempre tremer, que já sabemos que nos vai acordar e fazer sentir sítios do corpo e da mente cuja existência desconhecemos, que é como um comboio-bala que nos atropela sem doer, que podia perfeitamente estar a tocar no dia do juízo final.
A canção seguinte, o nome não lhe sei – creio ser exclusiva dos concertos –, mas poderá ser descrita como um leque infinito de socos e estaladas dadas por um baixo e batida gravemente densos, como as pedras mais pesadas do mundo a cair rápida e fluentemente, a construir cidades e mundos com uma proeza e maestria divina.
Depois da pausa na estação de serviço da auto-estrada sónica dos Sensible Soccers, regressámos para e fechámos com Villa Soledade em “Shampom”, que entrava inacreditavelmente bem. Descobrimos sons e camadas novos, como sempre acontece, ouvimos todos os estilos e mais alguns comprimidos numa sinfonia harmoniosa de batidas de dromedário, de uma guitarra com propulsores atómicos, de sons esfumados e sintetizadores feitos de toda a matéria invisível que preenche o espaço e o Espaço.
O concerto dos Sensible Soccers foi tudo isto e mais, como sempre. Sentimos que valia a pena Portugal existir só por causa daqueles 60 minutos que mais pareceram 20. Dêem-lhes o Coliseu, dêem-lhes o Panteão. Onde quer que seja, na Terra ou em Alpha Centauri, dêem-lhes horas e horas de palco, por favor.
The Comet is Coming, a banda londrina que pisaria o palco logo de seguida, era cabeça de cartaz. Mas era-o apenas no que a formalidades e nacionalidades diz respeito, já que em talento ficariam muito aquém da banda “de abertura”.
Num concerto que frequentemente caía em banalidades e construções sónicas ocas, houve alguns momentos de consciência sonora maior. Encontrámo-los em sequenciadores retirados directamente do experimentalismo Moog do século passado, num saxofone envolto numa reverberação que tanto podia vir do submundo como do espaço – aqui e ali fizeram-nos sentir numa batalha épica de um qualquer livro antigo de super-heróis da Marvel -, nas paisagens tropicais que se misturavam com geografias orientais, nas batidas jazz que se ouviam de vez em quando e na influência de Sun Ra que se via transformado numa mistura de jazz e música electrónica feroz e tântrica. Fora estas ocasiões – que, na realidade, foram duas ou três -, os The Comet is Coming perdiam-se em construções previsíveis e muito esquecíveis, tornando-se as projecções visuais mais interessantes que a música.
No fim ficaram os Sensible Soccers e a dor de apenas os termos ouvido uma hora. Que venha a próxima.