Para muita gente, Santana é sinónimo de guitarradas foleiras e camisas piores ainda, uma espécie de Juan Luis Guerra da guitarra eléctrica. É claro que isto é só veneno, mas os sempre tenebrosos anos 80 e o sucesso mainstream que Santana foi conseguindo nas décadas seguintes acabaram por ofuscar algumas coisas importantes: Carlos Santana é um músico e um guitarrista enorme; em toda a sua carreira procurou seguir caminhos artísticos que não eram os mais óbvios; e a sua banda inicial, na viragem para os anos 70, permanece como uma das máquinas de rock mais endiabradas e competentes da história.
Vamos por partes, voltando às origens.
Os Santana, reunidos à volta do guitarrista mexicano Carlos Santana, surgiram na São Francisco de 1967, exactamente no meio do flower power e do acid-rock que definiria uma época. Com uma grande diferença face aos seus pares: a herança latina de Carlos, a sua forma de tocar guitarra, as congas e a percussão latino-americana davam-lhe um som distintivo que foi suficiente para a Rolling Stone ter torcido o nariz ao disco de estreia, homónimo, de 1969.
Sob o alto patrocínio do todo-poderoso Bill Graham, esta banda desconhecida fora de São Francisco conseguiu um lugar no mítico festival de Woodstock, onde incendiaram o palco, e o resto é história. A Santana seguiu-se Abraxas (1970) e Santana III (1971), até a banda se esfumar com estrondo e zangas mútuas. A culpa foi das coisas do costume: sucesso traz miúdas, traz dinheiro, traz drogas, e traz descuido na parte musical, algo que Carlos Santana não admitia. Houve outros culpados, como os Weather Report ou Miles Davis, amigo de Santana que andava a explorar o mundo em Bitches Brew e a virar a cabeça do guitarrista para as possibilidades da fusão e do experimentalismo. Foi desse desejo de explorar novos mundos e da desilusão pelo abuso de drogas da sua banda que o alinhamento inicial de desfez. Até agora, 45 (!) anos depois.
A ideia de reunir a velha banda de novo já tem alguns anos, mas só agora os resultados vêem a luz do dia. É por isso que o 23º disco da carreira da entidade Santana vem intitulado Santana IV. Porque quer pegar onde a banda largou. E o resultado é mais do que satisfatório.
O que temos ao longo destes 16 temas é rock do bom, com toques de psicadelismo latino de quem não anda a imitar os seus heróis do antigamente, mas sim a continuar o seu próprio percurso interrompido antes do tempo. Os primeiros tempos da banda tinham também como marca de água o órgão de Gregg Rolie, que funciona também como vocalista principal, insuflando nos temas um toque de Ray Manzarek com anfetaminas. Os melhores temas de Santana IV são exactamente aqueles onde o órgão de Rolie tem espaço para brilhar. E o rock psicadélico, na sua forma mais pura, é deixado à solta, em músicas longas, que desenrolam paisagens novas dentro do mesmo ritmo sempre em frente. Quando Santana se deixa entusiasmar pela sua guitarra latinada, o que ganhamos em exuberância perdemos um pouco em bom gosto, mas ainda assim a muitas milhas de distância de outras “azeitadas” que lhe conhecemos de certas partes da sua carreira. Há excepções, claro. “Choo Choo”, por exemplo, aproxima-se mais do seu trabalho dos anos 90, e é por isso mais esquecível e até desenquadrado. A balada instrumental “Sueños” é doce de mais, a roçar o parolo. Mas nada de demasiado grave. E, sobretudo, tudo perdoável, porque quando a banda arranca e se perde nas jams, que são a sua grande força, apetece ignorar o facto de o disco ter um ou outro tema a mais, e que não só não acrescentam como até retiram força e coesão ao álbum.
Há inúmeros temas dignos de destaque, mas não fazemos a desfaçatez de os singularizar. Santana IV é um disco para ser consumido como um disco merece, por inteiro e por ordem, numa viagem multicolorida, suada e muito recompensadora. Os rapazes estão de volta e, 45 anos depois, fizeram um dos grandes discos de rock n’ roll do ano da graça de 2016. Para confirmar, o homem e o mito, no Meo Arena, a 27 de Julho.