Que aconteceu à rainha? Apoiada por reverberantes guitarras e um brio soul digno dos cânones, condescende, soçobrada, que “(…)every diamond has it’s imperfections.”. Que sucedeu ao seu diamante flawless, reflexo do seu matrimónio sexualmente empoderador, que tanto gabava no homónimo álbum anterior? Triste sorte, estranha condição: após bradar completamente resoluta ao mundo de que uma relação monogâmica poderia (e devia) ser um verdadeiro exemplo de felicidade amorosa, descoberta erótica e igualdade sexual; após dois álbuns a celebrar a sua relação hiper-mediática com JAY Z (com o hífen foi-se igualmente a qualidade), o mesmo é-lhe infiel.
Como lidar? Se bem que um álbum visual à semelhança do anterior, as letras e música de Lemonade são, por si, conceptuais, cinemáticas, altamente descritivas e imagéticas, seguindo um fio condutor: o ouvinte acompanha Beyoncé no seu deliciosamente melodioso processo de ultrapassagem da dor. Escutamo-la enquanto desespera sabendo que algo está errado ao encostar o ouvido às portas, ao saborear desonestidade no respirar do seu amado. Juntamo-nos a ela quando ameaça deixá-lo, abanamos a anca quando se arrepende de ter um anel no dedo (agora cuidadosamente posicionado no do meio), preocupamo-nos com a tóxica fantasia de acompanhante, emocionamo-nos quando se apercebe de que o antídoto para o seu mal é o seu malfeitor. O álbum é uma narração coesa, levando-nos desde a negação até ao perdão.
E nisto tudo, Lemonade é acompanhado de um filme que, não sendo indispensável para a fruição do que é o melhor álbum pop de 2016, será, para quem o vê, indissociável da memória: como esquecer as mulheres afro-americanas embaladas pelo falsete do convidado James Blake, lutando para travar as lágrimas puxadas pela morte de um filho assassinado pela polícia, do qual um retrato seguram?
“A pessoa mais negligenciada na América é a mulher negra.”, prega, a certa altura, no acompanhamento visual do álbum, uma gravação de Malcolm X. Num arrebatador passo artístico, Beyoncé pega na marginalização e desolação sentida pelo seu coração e contextualiza-as fora da sua esfera pessoal, equiparando e aliando-se à igualmente sofredora América negra: “Freedom” são peitos a erguerem-se por entre órgãos tormentosos e rufares de tambor explosivos, com direito a refrão catártico e um genial Kendrick Lamar, mas canta-se tanto a importância de lutar pelo amor verdadeiro como Black Lives Matter. E quando urge que se pintem as rendidas bandeiras brancas da cor homónima da sua filha Blue, dá-se a consagração de Beyoncé como figura política musical – lutadora, defensora e poderosa porta-voz de todas as mães negras americanas: as traídas pelos maridos que perdem o seu chão, as traídas pela polícia que perdem os filhos, as traídas pelo governo que perdem tudo. “Motivate your ass, call me Malcolm X.” Não está só a avisar o infiel marido.
Faz-se rodear de uma equipa de produtores e escritores que, de modo detalhado e fiel, espelham musicalmente os seus sentimentos: uma experiência totalmente imersiva na sua psique, enquanto gladia os seus demónios. Portanto, quando a ouvimos ameaçar o seu marido de que saltará para o sexo de outro indivíduo em “Don’t Hurt Yourself”, um sample de “When The Levee Breaks” dos Led Zeppelin dá-lhe uma base hip hop abrasiva para (literalmente) gritar as suas vinganças e injustiças sentidas, enquanto o ladrar de Jack White, parceiro de negócios do seu consorte no serviço de streaming Tidal, a ajuda na ruidosa pancadaria – é, no mínimo, incendiário. Ao tentar, em “Hold Up”, encontrar justificação para as acções do seu amante, o refrão, escrito pela única outra personalidade musical tão obcecada em cantar sobre o seu próprio casamento, quase que espelha o carente e saudosista de “Maps” dos Yeah Yeah Yeahs. O devaneio de se tornar numa mulher de noite na canção “6 Inches” é acamado, claro está, pela seda vocal da pop star mainstream mais explicitamente sexual dos anos 2010. “Daddy Lessons” enceta uma procura espiritual por respostas no pai, natural do Louisiana, e o resultado é um caldeirão fervilhante apimentado por jazz de Nova Orleães, blues sujos e gospel profundamente sentido.
E é, de facto, o sentimento de Beyoncé, a sua entrega, a sua excepcional capacidade como intérprete, o seu enorme vozeirão, que faz deste o melhor álbum pop de 2016. Em “Hold Up” ou “Sorry”, a cantora muda de registo imprevisivelmente uma mão cheia de vezes, assim como em tantas outras faixas. Tornam-se assim excitantes as composições, uma luxuosa tela onde Beyoncé pinta com toda a mestria, como quer e quando quiser. O seu ouvido melódico é incomum: as inflexões e tons que utiliza nos versos chegam a ser tão ou mais pegadiços que os refrões, estes sempre de um enorme bom gosto. E quando decide dar o foco principal a James Blake na breve e perfeita “Forward”, oferecendo apenas vocais de apoio, apercebemo-nos de que Beyoncé sabe, mais do que ninguém, onde colocar a voz – nem que isso passe por não colocá-la e deixar outro tomar a liderança. (Será isto possível noutra estrela pop de tamanha dimensão?) E se nada do que é descrito anteriormente convence, ouça-se “All Night”: toda a alma de uma cantora no que é a melhor canção da sua carreira – nada mais apto para o que é o maior perdão da sua vida.
Menos experimental do que o registo anterior, todavia muito mais corajoso, poderoso, político, focado, clássico: Lemonade é um monumento emocional dedicado à infidelidade e como uma das mais reconhecidas cantoras de sempre lida com a mesma. Há perdão, um final feliz, trap orgulhosamente negro a encerrar festiva e alegremente o álbum. Mas Jay Z, ficas avisado: “If you try this shit again, You gon’ lose your wife.”