Parece estranho, mas a Princesa enunciada no título é rigorosamente o avesso da ideia que a palavra quase sempre documenta. Ela nem sempre pode ser soberana quando deseja sê-lo, nem sempre pode ser distinta, nem sempre pode ter a presunção de ser dona de si mesma, do seu corpo, da sua personalidade. A fina ironia do título só se entende depois de ouvidas as canções do álbum, mas logo pela capa percebemos que algo vai andando fora dos trilhos, algo parece ser apresentado de forma a gerar desconforto, o que do ponto de vista artístico se afigura ser de enorme valia e relevo. Afinal, a princesa enunciada é a mulher que luta para se afirmar, para poder usar a coroa da sua integridade e da sua independência no simples dia-a-dia, sem que para isso tenha de baixar a cabeça e esconder a cara por vergonhas avulsas que não lhe cabem. Falo do novo trabalho, o segundo, da banda composta por um quinteto de luxo, de uma banda única no Brasil de hoje, próxima e distante do rock alternativo, do psicadelismo da moda, de tudo o que tenha a ver com rótulos definitivos. A novidade, a reinvenção constante, o experimentalismo, tudo cabe em Carne Doce e nos seus integrantes Salma Jô, Macloys Aquino, Victor Santana, Ricardo Machado e Aderson Maia.
Está diferente, esta Carne Doce! Por vezes mais tenra, embora nunca macia, mas maioritariamente crua, sobretudo se ouvirmos com atenção o que as canções de Princesa nos querem dizer. Aquilo que pretendem transmitir é assunto sério, urgente, daí a importância que a palavra tem neste novo trabalho da banda de Goiânia. Esse é um dos méritos de Salma Jô, que para além da voz, empresta ao disco uma coesão muito significativa em termos de conteúdo temático, centrada na mulher enquanto ser que ainda sofre bastante socialmente, muito mais do que o homem. De todas as maneiras, tanto física como psicologicamente. Ouça-se, por exemplo, “Artemísia”. Está tudo lá, nessa guerra entre a imposição dos outros e a vontade própria.
Parece óbvia a existência de um claro crescimento artístico da banda, como óbvio também parece que no Brasil (e era muito bom que por cá também) o grupo tem vindo a ganhar o seu espaço de forma cada vez mais evidente. Princesa, o disco, é um momento de abertura de caminhos, e para isso contribuem temas como “Princesa”, dançante, bem ritmada e com uma certa leveza de balanço, mas também “Sereno” ou “Açai”, que encerra o disco. Outro reflexo da mudança, embora não radical, do caminho sonoro que pretenderam seguir, é “Carne Lab”, tema longo, superior a 10 minutos de duração, onde o experimentalismo é bastante mais evidente do que em qualquer outra das 11 faixas do disco. Quase totalmente instrumental, “Carne Lab” é um extraordinário momento de inventividade, de brincadeira séria, ouvindo-se nele momentos de puro dub e eletrónica ambiental com um leve cheiro a kraut. É a faixa que mais me faz sorrir, confesso. De contentamento e de prazer, o que não deixa de ser algo injusto, uma vez que a voz de Salma Jô não está presente, e a sua voz, o seu tom, a sua maneira muito própria de cantar são condimentos que muito aprecio nos Carne Doce. Outro belíssimo momento é “Falo”, onde de novo a palavra volta a ganhar destaque. Começando por territórios sonoros a lembrar arábias longínquas, “Falo”, com o seu evidente duplo sentido de poder ser verbo e anatomia humana ao mesmo tempo, tem a garra, a força, o punch de um soco na cara. Muito bom, como muito bom é, para ser justo, todo o disco. “Amiga” é outro valor seguro, melodiosa como poucas outras canções, serena, bonita, mas com uma mensagem tremenda de abandono, de solidão, de dor apuradíssima.
No fundo, o que queria mesmo dizer, é que dá vontade de tornar Rainha esta Princesa. O que queria mesmo dizer, é que me parece urgente dar a conhecer Carne Doce e desejar que venham a Portugal. Quando isso acontecer, terão em mim um súbdito fiel, e lá estarei, à frente de um qualquer palco, a assistir ao efémero reinado do seu concerto.