O quarto álbum dos Echo & the Bunnymen, Ocean Rain, é a sua consensual obra-prima: orquestral, misteriosa, evocativa.
A trágica morte de Ian Curtis em 1980 deixou um enorme vazio. A vanguarda urbano-depressiva (sempre com a sua gabardine cinzenta, mesmo que fizesse sol) ficara órfã. Echo & the Bunnymen e U2 tentaram então preencher esse espaço (sim, os globais U2 já foram uma pequena banda pós-punk, com bateria robótica e baixo melódico à Joy Division).
Dos seus mestres melancólicos herdariam o sentido do transcendente e do grandioso (a cinemática “Atmosphere” como grande modelo inspirador). A melancolia era, porém, filtrada (Ian Curtis levara-a longe demais!): procurava-se agora a luz e a glória (a salvação). Uma obsessão pagã – quase céltica – com os elementos da natureza atravessava o seu imaginário (a chuva, o céu, a montanha, o sol). Um segundo nome unia as duas bandas: a influência dos Television (Tom Verlaine reinventara a linguagem da guitarra do rock em Marquee Moon, substituindo o calor do blues por uma gélida pureza cristalina).
Se os Bunnymen odiavam de morte a banda de Bono (McCullough dizia que U2 era música para canalizadores e pedreiros!), não era tanto por razões estéticas (havia muitas semelhanças), era sobretudo por ressentimento (os U2 eram mais populares). Os Bunnymen viviam nesta permanente tensão entre a coolness das margens (acusavam os rivais de serem uns vendidos) e uma secreta ambição ao estrelato, consentânea com o ego desmedido de McCullough e o esplendor da música dos Echo (Ian havia sido um ardente fã do Bowie da fase glam, sendo avesso aos “plebeísmos” do underground).
Os Bunnymen dos primeiros discos eram pós-punkíssimos na sua depuração (mais uma herança dos Joy Division); mas pouco a pouco foram-se tornando mais ornamentados. Chegados a Ocean Rain só uma orquestra de 35 peças era grande o suficiente para cobrir o reflexo de McCullough no espelho. Podia ter sido o momento Soft Parade dos Bunnymen mas o bom gosto das orquestrações (vibrantes, sem qualquer sentimentalismo kitsch) e a solidez das canções (com melodias bonitas que ficam no ouvido) aproxima-os, isso sim, de “Eleanor Rigby“. Se a generalidade do pós-punk queria fazer um corte com os anos 60, é preciso lembrar que os Bunnymen eram de Liverpool. O respeito dos locais pelos seus Beatles é inegociável.
Se roubássemos os masters de Ocean Rain, e lhes subtraíssemos a pista da orquestra, o minimalismo pós-punk de que falávamos voltaria de novo ao de cima. Menos dissonante, é certo, mas igualmente esparso: uma guitarra acústica arranhando os acordes, uma secção rítmica sóbria mas imaginativa, solos depurados de Will Sergeant (elegantíssimos na sua simplicidade).
O pós-punk nunca foi conhecido pela beleza das suas vozes. Timbres toscos como os de Mark E. Smith sempre foram a norma, fazendo da imperfeição estilo. Não há, porém, regra sem excepção: McCullough tem uma belíssima voz de anjo mau. Nos primeiros trabalhos, Ian ainda tentava pós-punkar, uivando, zangado, sempre que podia. Chegado a Ocean Rain, o crooner dentro de si sai do armário, cantando com a autoridade de um Sinatra. Uma voz feita de luz, atravessando a escuridão.
Ocean Rain é a casa da canção mais conhecida – e mais bonita – dos Bunnymen: a gótica e misteriosa “Killing Moon” (não é só música, é também cinema). Outras baladas épicas assomam por aqui, como o lamento fúnebre de “Nocturnal Me” e o silencioso tema-título que encerra o disco, com a sua contenção quase exasperante. Baladas do mar salgado, diria Hugo Pratt.
Mas nem só da majestosa lentidão vive Ocean Rain. Muitas das canções são mais animadas e descaradamente pop. O single “Silver” – que abre o disco – tem uma melodia tão contagiante que nem o próprio McCullough lhe consegue resistir, cantarolando um “lá-lá-lá” de chuveiro. “Crystal Days” é também viciante, deixando-nos irritados por só durar dois minutos. O single “Seven Seas”, com o seu refrão orelhudo, vai pelo mesmo caminho: todo um compêndio em elegância pop.
“Thorn of Crowns” é a carta fora do baralho, com a sua estrutura mais lassa, quase psicadélica. As comparações de McCullough com Jim Morrison, habitualmente exageradas, fazem aqui todo o sentido: a sua teatralidade chamanística e erotismo perverso devem muito aos estranhos Doors (mais um exemplo do amor dos Bunnymen ao classic rock).
Que não haja dúvidas: Ocean Rain é a obra-prima dos Bunnymen (coesa, elegante, imaginativa). Não há um único tiro ao lado, são nove canções certeiras. O disco oferece-nos, porém, algo muito mais precioso do que entretenimento e eficácia pop. Oferece-nos mistério e uma fé indizível no poder redentor da beleza. Uma chuva azul a cair para nos salvar.