De Goiânia tem chegado tanta coisa boa ultimamente, que bem poderemos pensar naquele pedaço de terra como uma promised land dos sons e dos tempos futuros da novíssima MPB. E nós, no Altamont, há muito que estamos rendidos aos sons psicadélicos que por lá se fazem, ao ponto de podermos dizer por brincadeira, mas também com inequívoca verdade, que somos uma espécie de extensão virtual desse local longínquo neste outro lado do Atlântico.
Tudo isto serve como introdução ao primeiro álbum da carnuda e saborosa Carne Doce, que já por aqui tinha passado, e que terá sempre as portas abertas desta casa. Quando lançaram, em 2013, o EP Dos Namorados, o casal Salma Jô e Macloys Aquino mostrava já o potencial que agora, neste disco homónimo, e de forma bem mais ampla (trata-se de um álbum, e já não de um EP), souberam desenvolver e extremar ainda mais a sua linguagem muito própria. Embora soem a eles mesmos, também me parece certo que a banda soube filtrar muitos quilómetros de música que todos os seus membros terão ouvido em suas vidas, e por isso nota-se alguma influência dos tempos de Clube de Esquina, por exemplo, ou dos portentosos Novos Baianos. Alguma coisa entre o bonito e o estranho (que depois se entranha, tornando-se ainda mais belo), entre o direto e o ínvio, ou entre a novidade e a tradição renovada acontece com estes Carne Doce. Soam bem, muito bem, ao mesmo tempo que parecem procurar forma de fugir a essa ideia de soar bem, muito bem, certinho. Desde logo é preciso digerir a voz de Salma Jô, que nem sempre parece a mesma, tais as transformações a que a sujeita. O mesmo se passa com as composições da banda, que se transformam aos poucos, mudando de ângulo de abordagem desde o início até ao fim de certos temas. Por isso, se as ouvirmos uma e outra vez, parecem já diferentes, pedaços de som e ritmo em acentuada alteração. Estão bem vivos estes Carne Doce, e os temperos com que servem os nossos ouvidos podem ser apimentados (a letra e o vídeo de “Passivo” mostram isso claramente) ou ternurentos e inocentes como em “Amigo dos Bichos”.
As 10 canções de Carne Doce (todas inéditas, exceção feita a “Fruta Elétrica”, retirada do EP de estreia, e que aqui ganha nova e interessante roupagem) formam um todo orgânico muito coeso, mesmo mostrando-se repleto de ideias muito díspares. No entanto, a marca identitária que já se sentia no EP anteriormente referido, cresceu, evoluiu, ganhou até uma imponente dimensão. Que bom que é ouvir “o prazer do mato dentro da cidade” na galopante “Sertão Urbano”! Ou a mais furiosa “Preto Negro”, tão em contraste com “Canção de Amor”, por exemplo. Ou ainda o tema “Idéia” (grafado assim mesmo, com acento), de contornos mais frios e psicadélicos. Curiosa é também a faixa feita a meias com os nossos amigos Boogarins, de título “Benzin”. Todo o LP, aliás, é uma delícia, caixa de segredos sonoros para irmos abrindo e fechando ao sabor das conveniências e das necessidades. Ouvir uma e outra vez a mesma faixa, por exemplo, antes de avançarmos para a seguinte. Até nos textos que cantam os Carne Doce mostram algo de novo, de inusitado. Versos reveladores de coisas simples, de gestos do dia a dia (como “o carinho do seu pé sobre o meu”, verso inicial de “Canção de Amor”) são claramente a opção lírica da banda de Goiânia.
O caminho que têm pela frente é imenso face ao que até agora foram trilhando, pelo que se adivinham novos e futuros bons discos dos Carne Doce. Cá estaremos à espera deles, obviamente. Mas, para já, aproveitemos este novo pedaço sonoro. A carne, nos tempos que correm, serve-se doce, fresca e suculenta. Aproveitem-na.
* de notar que o disco Carne Doce sai hoje [15/10/2014] em formato virtual, pelo que o passo mais lógico a fazer depois de lido este texto, é mesmo ir ouvi-lo por inteiro, e sem demoras. Até porque o disco físico só surgirá no início de 2015.
Muito orgulho do namoro Altamont-Goiânia. Mais um bom exemplo.