
Neste segundo dia, a notícia de há cerca de uma semana não deixava espaço para dúvidas: quando esgota um dia do Vodafone Paredes de Coura, é sabido que escolhas difíceis terão de ser feitas. Neste caso, tivemos de sacrificar os concertos de White Fence e de Steve Gunn, ex-companheiro de banda de Kurt Vile e que ao longe estava a soar muito bem, em prol da alimentação. Ainda assim, neste dia 20 de agosto, só sobrou espaço para concertos excelentes, cada um melhor que o outro, mas com um claro vencedor…
Embora tenham começado cedo os concertos de Hinds e dos bracarenses peixe : avião, ambos boas escolhas para a abertura deste segundo dia do festival, pela energia que ambos apresentam em palco, foi com os Pond que as coisas começaram a mexer. A abrir com “Waiting Around for Grace”, ficou claro que os australianos foram agraciados por algo; uma energia pairou sobre eles durante todo o concerto e fez-se sentir na agitação psicadélica de “Giant Tortoise”, em “You Broke My Cool”, que pôs toda a gente cantar, ou ainda em “Man It Feels Like Space Again”, música que dá nome ao último álbum da banda e que tem um verso que parece adequar-se muito bem ao festival (“we can talk by the river”). Um concerto muito bom, mas que pareceu curto (mereciam mais tempo de atuação) e no qual se sentiu a falta de um baixo elétrico, especialmente no single “Elvis Flaming Star”.
Depois, por volta das 21h20, entrou em palco Father John Misty, para um dos mais aguardados concertos da noite. O Senhor Misty, teve Coura a seus pés; porém atente-se: fez por isso. Um verdadeiro animal de palco, Joshua Tillman – verdadeiro nome do cantautor americano – é elétrico, quer a nível corporal (assustadoramente felino e predatório, num total devorar das suas canções, tal o controlo e poder sobre estas) ou vocal (várias vezes se assistiu a ovações por parte do público, tamanho aquele vozeirão), quer dos arranjos em modo concerto (com esta entrega, que se danem os lustrosos e pomposos arranjos dos dois brilhantes álbuns de estúdio). Intercalando as suas canções com a sua hilariante ironia corrosiva – ou mesmo durante – destaque para a colossal “Bored In The USA” que levou a audiência a levantar os isqueiros e juntar-se aos risos enlatados que pontuam a canção, onde Misty repetiu parte da mesma para “ter a certeza que ficava gravado” no telemóvel de uma fã – tornou o anfiteatro natural de Coura em algo mais intimista: nós, ele e a (fabulosa) banda, num espaço agora mais pequeno, mais nosso. Canções tornadas intemporais (Fear Fun a mostrar-se tão essencial como I Love You, Honeybear), o rock como salvação de algo que não precisa de ser salvo, mas que urge por.

Da multicolor melancolia de Father John Misty passámos para o frio preto e branco dos Iceage. Na sua segunda passagem pelo festival minhoto, os dinamarqueses trouxeram malhas frígidas e assertivas, num concerto intensamente vivido por banda e plateia. O vocalista, Elias Bender Rønnenfelt, não descansou sem primeiro cirandar por todos os centímetros quadrados do palco e sem subir a todas as colunas, gritando a raiva que tinha lá dentro sem pudor. E foi deste modo incansável e imparável que a banda fez a apresentação do último álbum de originais Plowing into the Field of Love, tendo também havido espaço para incursões pelos dois anteriores New Brigade e You’re Nothing. Pelo meio houve ainda espaço para crowdsurfs incessantes, ainda que o quarteto não mostrasse uma particular empatia por esse facto.
Logo a seguir, em horário nobre, um espaço que muito poucas vezes é deixado a cargo de artistas nacionais, The Legendary Tigerman subia ao palco Vodafone para um concerto que poucos adivinhavam no que se iria tornar. Com casa cheia, Paulo Furtado mostrou-se desde o primeiro minuto rendido ao público; e este, para sempre amigo dos artistas que o tratam bem, fez questão de lhe dar o que ele queria. “É um regresso a casa”, disse o conimbricense. Assim, durante hora e dez em que se desenrolou o concerto, de guitarra na mão, o português pôs todo o anfiteatro natural que é o palco principal a bater o pé e a dançar ao som do seu blues fogoso, desértico e sensual. Passando por músicas como “Naked Blues”, forte e pulsante, ou “And Then Came the Pain”, o velho blues foi homenageado e nunca se sentiu tão novo. Para isto contribuíram também as longas e brilhantes conversas entre a guitarra e os restantes instrumentos – saxofone, teclas e bateria – que adicionaram ao espetáculo algo místico, como se estes tivessem vida própria. Já no final, num registo mais acelerado e elétrico, “Bad Luck Rhythm ‘n’ Blues Machine”, a cover do clássico de Nancy Sinatra “These Boots Are Made For Walkin’” puseram todos a saltar. Por fim, em “Twenty First Century Rock ‘n’ Roll”, Paulo fez o público gritar pelo rock ‘n’ roll até à exaustão, tendo até perdido um microfone quando o deu ao público para celebrar o género com ele. É impossível que Chuck Berry, Elvis e Buddy Holly não tenham ouvido o chamamento de Paredes de Coura, já que todos se transfiguraram na figura do lendário homem-tigre. Um concerto memorável, que ficará para sempre gravado nas margens do Coura.
Depois da festa que tinha sido o concerto de Tigerman, a espera foi longa pelo mais ansiado concerto da noite (e do festival inteiro). Foi, então, por volta das 00h50 que os Tame Impala entraram em palco, sob uma salva de palmas que fez tremer a colina. E o que aconteceu na seguir só verdadeiros mestres conseguiriam fazer. Guiados pelo mago Kevin Parker, os australianos lançaram um feitiço sobre o público nacional que, desde a introdução instrumental à última nota de “Nothing That Has Happened So Far Has Been Anything We Could Control” (o encore inesperado e fora do programado para o concerto), fez com que ninguém estivesse parado enquanto houvessem ondas sonoras a viajar pelo ar. Num turbilhão de guitarras carregadas de delays, reverbs, flangers, chorus, phasers e tudo mais que possa existir no mundo dos pedais, teclados do outro mundo e linhas de bateria perfeitas, faíscas voaram dos amplificadores e colunas e eletrizaram tudo num raio de muitos quilómetros, fornecendo a energia para as viagens espaciais que todos experienciaram durante a 1h45 do concerto. Assistiu-se a uma mudança do espaço envolvente enquanto durou a magia: de repente já não existiam árvores, nem rio nem nada; só víamos as estrelas, galáxias, cometas, supernovas a que nos levaram músicas como “Mind Mischief”, “Eventually”, “Alter Ego” ou “Apocalypse Dreams”, já para não falar das jams que pontuaram o concerto aqui e ali. Algo que se notou – e que é de louvar – neste concerto, foi a maneira brilhante como os australianos traduziram ao vivo tudo, até ao mais ínfimo detalhe, o que está nos discos, algo que não é nada fácil de fazer. Outra coisa que saltou ao ouvido, também, foi a adaptação de músicas mais antigas à nova sonoridade da banda; por exemplo, a belíssima “Why Won’t You Make Up Your Mind?” beneficiou imenso com a introdução disco que Kevin e companhia lhe deram. Quanto às novas músicas, se em estúdio já soam bem, ao vivo ficam ainda melhores, com o seu inevitável charme 80s a não deixar ninguém de pés no chão e sem dançar. Ansioso por as mostrar ao público nacional, Kevin está claramente orgulhoso do seu trabalho e ainda bem. Se outras músicas nos fizeram viajar no espaço, “Let It Happen” (que abriu o concerto de uma forma fantástica), “The Moment”, “The Less I Know The Better” e “’Cause I’m A Man” levaram-nos para um lugar no tempo as bolhas de espelhos essenciais para a festa e fizeram brilhar a sua própria luz sobre a pista de dança em que se tornou o palco principal do Vodafone Paredes de Coura, numa festa incrível e impossível de repetir. Demorou, mas finalmente os encantos lusitanos caíram caíram sobre os Impalas. À quarta passagem por Portugal, Senhor Parker afirma (e não há dúvidas quanto a isto): “So far this is our biggest crowd and our best concert in Portugal!”. Entre elogios à beleza do espaço, houve também espaço para a banda agradecer pelo concerto, primeiro de uma extensa tour europeia, dizendo não haver melhor maneira de começar uma série de concertos destas do que com um espetáculo assim. Foi bonito. Foi perfeito. Foi mágico. A música foi levada a um novo patamar. Sob uma salva de palmas ainda maior do que no início, a banda despediu-se do público e deixou logo saudades. Aguardamos ansiosamente o regresso dos australianos.
Depois houve ainda, até muito tarde, after hours pelas mãos de Mirror People e do ator Nuno Lopes.
Findado mais um dia do Vodafone Paredes de Coura, é tempo de lavar a cara e ir preparando a mente para mais um dia cheio de música boa. Até já!
Textos: Luís Marujo, Francisco Marujo e Guilherme Portugal || Fotos gentilmente cedidas por Hugo Lima