
Dia novo, vida nova: este seria o mote para o segundo dia de NOS Primavera Sound.
Depois de um primeiro dia de sonoridades variadas, o Parque da Cidade vestiu-se de cabedal preto e botas pesadas. No dia que se adivinhava tendencialmente mais roqueiro que os outros todos, até o céu usou cores escuras.
Entre uma chuva teimosa mas pouco afoita e um fresquinho bem mais fresco do que se desejaria, os portugueses Torto foram os primeiros a deixar marca nesse dia. Post-Rock robusto foi servido a “torto” e a direito, com destaque para “Batata Quente” e “Não sei”. Começava a desenhar-se um dia especial.
O palco Super Bock recebia Midlake e o seu misticismo lo-fi. Com um crescendo de camadas de som, teclas suaves, baixos pesadíssimos, bateria simples e guitarra harmoniosa iam-se enrolando de maneira especial, reconfortante. O ensemble barbudo e de ar tosco espalhou carinho entre as centenas de pessoas que se perfilaram pelo vale relvado, com tempo até para umas palavras em português frágil – “ Estamos muito felizes por estar no Porto e que a chuva parou!”, afirmou o teclista Jesse Chandler. Ouviu-se, maioritariamente o último álbum do grupo norte-americano, Antiphon, onde faixas como “Provider” ou “The Old and The Young” deslumbraram.
Estávamos no segundo dia do festival, mas também no primeiro com mais que os dois palcos ativos. ATP e Pitchfork, na periferia da zona central do parque, começavam a receber a música que lhes tinha faltado no dia anterior e dos primeiros a fazê-la soar foram os chilenos Föllakzoid com o seu psych-pop rendilhado e bastante agradável. O público ia dançando de olhos fechados, sorrindo alegremente e sem pensar em muito. Pouco tempo depois, o mesmo palco ATP recebia os druídicos Televison (fraco. Ter-se-ão esquecido do punk em casa?), que se propuseram a tocar Marquee Moon famoso álbum de 77. De destacar o impressionante cenário que o Primavera nos oferece, onde tão depressa se ouve a década 70 como estamos no futuro… como se esteve com Warpaint.
Se o público já tinha provado “rockzinho” com as Haim no dia anterior, o banho de música que Jenny Lee Lindberg, Shannyn Sossamon, Emily Kokal e Theresa Wayman nos ofereceram, veio encostá-las a um canto. Quem já as tinha visto há poucos meses em Lisboa, já estava preparado para a profundidade hipnótica da sua música, mas no Porto soube ainda melhor. O público, pequeno ao início, quase que tinha de lutar com o baixo imperial que pautava as composições etéreas mas sempre, sempre com rock (progressivo?) na superfície. Tocou-se, principalmente, o novo álbum, homónimo, com frequentes e bem medidos regressos ao passado de Exquisite Corpse e The Fool. Que bem que soube ouvir o ternurento “Keep it Healthy” e o visceral e porcalhão “Disco//Very”.
Logo de seguida, ainda transpirados e de coração acelerado, chegava o primeiro grande momento do dia. Numa daquelas raras alturas, onde todos os astros, constelações e planetas se alinham e a vida ganha uma vivacidade quase mística, Slowdive e Pond atuavam ao mesmo tempo. Não tínhamos saudades destes dilemas festivaleiros, especialmente quando ambos os espetáculos foram exímios.
Slowdive, de voz molengona mas perfurante, caiu como um véu naquelas primeiras horas de escuro. Muito bom o regresso dos ingleses. No outro extremo do parque e … do espectro musical, os psicadélicos ( com “p” maiúsculo) Pond fizeram explodir o palco ATP. Rasgando vertiginosamente a humidade que começava a cair, músicas novas (novo álbum dos Australianos sai este ano) e músicas antigas fizeram o êxtase da pouco modesta e muito barulhenta plateia. Moches, crowdsurfing, gritos e assobios: houve de tudo. Houve “Giant Tortoise”, obviamente, mas também se provou “Whatever Happened to the Million Head Colide” (fortíssimo) e “You Broke my Cool”.
Num ritmo que se tornava cada vez mais alucinante no que toca a concertos de qualidade muito superior, Godspeed You! Black Emperor seguiu-se, causando orgasmos musicais a todos os que, deitados na relva de olhos fechados ou em pé junto ao palco a contorcer todos os músculos do corpo os ouviram. Enquanto isso os míticos Pixies tomavam de assalto o palco NOS, numa atuação frouxa, muito valorizada pelo desfile de clássicos que já tem na bagagem. “Here comes your Man” soou a verão e, claro, “Where is my Mind?” uniu os milhares de vozes (na sua maioria, já um pouco grisalhas) que iam gingando alegres. Foi leve, mas soube bem.
Depois de uma pequena pausa para recompor o estômago, cortesia da casa Conga (ricas bifanas), John Wizards e os seus doidos ritmos electro-africanos (sim, leram bem) vieram por pés a mexer e mãos no ar. Uma enxurrada de boa disposição e dança fazia do palco Pitchfork sua casa, com o seu primeiro e único álbum a ocupar quase toda a setlist. Feliz presença dos sul-africanos.
Mais um dilema: Darkside ou Mogwai? Resposta difícil, muito difícil mesmo. Os escoceses já estão fartos de palmilhar, sempre com qualidade, solo lusitano; Nico Jaar e Dave Harrington vinham pela primeira vez, na crista de uma onda gigante de hype. Darkside ganhou. E melhor escolha não se poderia ter feito, sem detrimento para Mogwai, que com o seu carácter muito próprio, não desiludiu.
No palco Pitchfork, numa escuridão limitada pelas abas da tenda que o cobria, sentia-se uma calma estranha. A calma antes da tempestade? Provável. A verdade é que assim que os dois membros deste singular projeto subiram ao palco, frente a frente, combativos, com o orgânico da guitarra a chocar de frente com as vagas avassaladoras que saiam pelas mão de Nico. Chocavam mas não havia mortos, não havia feridos muito menos amolgadelas. Havia um som fantástico, robusto, proteínado mas sem nunca perder a subtileza. As faixas, como a “Golden Arrow” ou “Paper Trails”, começavam de forma simples, uma ou duas linhas de som que no tempo certo, sem pressas, puxavam os acordes que iam cintilando quase tanto como a cenografia do palco. Simples, cerebral e belíssimo. O tempo pareceu ter parado por entre os intervalos do baixo que assassinava costelas. Só foi pena não ter durado mais.
Ainda em transe, dávamos o dia por concluído. Grande dia de Primavera Sound!
(Fotos: Daniela Filipa)