
A Primavera, tradicionalmente, começa com flores, árvores bonitas e cheiros fortes a natureza e sol. É isso que nos ensinam e é isso que nós próprios vamos aprendendo com os anos que passam. Mas esta é a Primavera tradicional.
Desde 2012, o norte de Portugal, mais concretamente o Porto, tem sido palco de um novo tipo de estação do ano. Se arbustos floridos e folhas viçosas já são, só por si, uma paz de alma, o NOS Primavera Sound é um bálsamo de cultura e música que (quase) rivaliza com a mística e maravilhosa terra de Paredes de Coura.
Dia 5 de Junho marcou a inauguração oficial da edição deste ano. Os nomes eram grandes, os palcos eram poucos (2), e a chuva ameaçava baralhar as contas de quem, ao engano, chegou ao recinto de “calçõezinhos” e t-shirts. Mal sabiam eles a sorte que iriam ter: só pingou quase no final da noite.
As hostilidades foram abertas com Os da Cidade, no palco NOS. Com calma e de mansinho íamos entrando no espirito festivaleiro. Com António Zambujo e Miguel Araújo a liderar, a banda foi fazendo as maravilhas dos apaixonados que polvilhavam, modestamente, a relva e que se multiplicavam em beijinhos e abraços carinhosos. Bonito.
Mas o primeiro ponto alto do dia estava a chegar, um pouco mais ao lado, no palco Super Bock. O ex- Los Hermanos, Rodrigo Amarante, tinha a palavra, e de repente, o final de dia solarengo transformou-se numa noite de verão, quente, refrescada apenas pela música do coração que Rodrigo nos cantou. Cavalo, o seu primeiro trabalho a solo, dominou o alinhamento que nos passava pelos ouvidos como um “cafuné” meiguinho, reconfortante. Com poucas alterações de sonoridade, os 45 minutos de Amarante só ganharam mais fulgor com a Strokesiana “Hourglass” e a feliz “Maná”. “Irene” tocou e o público cantou – bonito momento, digno de deixar a cabeça cair para trás, fechar os olhos e sorrir. Com uma boa disposição encantadora (até as cordas da guitarra trata por “corda bonita”), Rodrigo encheu as medidas. A espacial e interestelar “The Ribbon” fechou com chave de ouro este segundo concerto primaveril.
Depois do show de Amarante, ainda meio trôpegos e apaixonados, chegou a altura de dar uma perninha de dança com os veteranos Spoon. Num rock leve e bem-disposto, foram os primeiros a puxar pela energia do público. Britt Daniel continua a ter genica para dar e vender e o público, tendencialmente mais velho, que acorreu ao Parque da Cidade pode comprovar. Fez-se uma volta pelo cancioneiro clássico com o nostálgico “ I Summon You”, “Cherry Bomb” ou “The Way We Get By”. Percorreu-se essencialmente os Gimme Fiction e Kill The Moonlight, álbuns daquela que se arrisca dizer, a melhor fase dos Texanos. Novo álbum estará na calha, resta saber se se conseguiu ultrapassar o modesto Transference.
Próxima no alinhamento seria Sky Ferreira, a jovem “promessa” do pop-rock alternativo. Tomando o placo secundário, Sky e toda a sua forçada pose “cool” fez o delírio das várias raparigas que, imitando-a quase dos pés à cabeça, cantaram “Boys” e companhia até não dar mais. Mas seria mesmo só essa falange aguerrida de groupies a vibrar. Quem lá tinha ido para ver um Caetano Veloso, por exemplo, pouco ou nada quis ter a ver com o fervilhar de “neo-emo-hipsterismo” que ali se fez sentir. Bem mais interessante foi a Francesinha que reconfortou o corpo e alma. Mais uma vez apostando (e muito bem) na promoção da gastronomia típica da cidade, a organização voltou a juntar clássicos nortenhos para deleite dos presentes.
De barriga cheia e pronto para mais música, o público começava a ficar mais quente. Sentia-se no ar um cheiro a Brasil e a bossa nova, que, para quem ainda não sabia, é foda. Chegava o rei Caetano.
No alto dos seus 70 e muitos anos Caetano veio distribuir Abraçaços pelas gentes que dançaram, cantaram e, possivelmente lacrimejaram – “Leãozinho” não perdoa- ao ouvi-lo. Teve principal destaque o novo álbum que mostra um Caetano Veloso diferente, mais jovem, mais atual, onde o tropicalismo sob forma de rock, funk e samba reinaram. “Baby” fez a delícia de todos, mesmo os que afirmavam na multidão que “os Mutantes cantam-na melhor”. “Triste Bahia” e “Escapulário” trouxeram um pouco de 1970 enquanto um eletrónico (esta palavra e Caetano Veloso na mesma frase não deixam de fazer confusão) “Parabéns” nos levou ao futuro. Foi um gosto partilhar uma hora e meia com uma das poucas lendas vivas da música. Pelo menos serviu para confirmar que a música brasileira está, de facto, em ascensão vertiginosa.
As Haim, depois de um atabalhoado teste de luzes e som de última hora, foram as próximas a dar música aos milhares de pessoas que já se haviam juntado à festa. As três irmãs abriram de rompante com o veloz “Falling”, mega-hit do primeiro álbum, e não descansaram um segundo. Vistosas e cientes disso, as manas não se inibiram em provocar o público de forma, por vezes, um pouco forçada. Pediram que se abanassem rabos, que se dançasse que nem loucos e que com elas se cantasse, ordens que foram escrupulosamente cumpridas: como alguém disse no meio da multidão “Há qualquer coisa de intimidante em miúdas giras que tocam rock porcalhão”- algumas dúvidas em relação ao termo rock, porém. O concerto foi um tanto quanto esquizofrénico, com uma alternância entre Rock, Pop e um semi-Folk que por vezes ia baralhando o público que, não fique dúvida, aproveitou bem os espetáculo de Alana, Danielle e Este. Destaque para o fulminante final de concerto com as três a darem tudo na precursão.
Chegava a hora que grande parte dos que ainda vagueavam pelo recinto esperava. Kendrick Lamar pela primeira vez em Portugal. E que primeira vez foi.
Sentia-se a excitação no ar, Tupac, Dr.Dre e companhia soavam pelo recinto, no warm-up da atuação quando as luzes baixaram. Histeria. Gritos e assobios. Chegava a banda primeiro e, já com ela a dar o mote para aquele que seria, o concerto da noite, Lamar entrou de rompante e sem piedade…. “Ya bish?”. Demos o salto para o “backseat” num relâmpago assassino e o baixo já ameaçava arrancar roupas, preconceitos e embirrações. Kendrick têm o poder de conseguir juntar num mesmo público quem vê Rodrigo Amarante e Sky Ferreira. Incansável, continuou sem piedade, com êxito atrás de êxito para bem de todos que lá estiveram. Só se conseguiu baixar a pulsação com “Bitch Don’t Kill My Vibe”, aí namoradas foram puxadas para mais perto e amigos puseram braços à volta uns dos outros. Todo o concerto alternou entre estas duas dinâmicas: ou uma violência que fazia estremecer caixas torácicas (gigantesca interpretação de “m.A.A.d city”) ou uma sensualidade transpirada, ofegante. Kendrick terá, sem a mais pequena dúvida, um lugar muito especial na história da música que hoje se escreve: consegue fazer uma mescla impressionante de sonoridade old school, com guitarras venenosas e beats mais contemporâneos. Como se já não bastasse o concerto que nos deu, ainda tivemos direito a rasgados elogios (“You are the best crowd i’ve ever had!”) e a uma comparação que quase fez corar (“You guys look like my home town of Compton: All i smell is weed on the motherfucking air!”).
Para acabar a noite, os australianos Jagwar Ma vieram trazer um pouco de psicadelismo àqueles que ainda resistiram à exaustão que Lamar criou e à chuvinha que começou a cair, tímida. Rock foi o que se quis e Rock foi o que se teve: já mais matura, a banda fez mexer, mas ainda precisa de afinações. O seu estilo à lá britpop às vezes cansa, ainda precisa de ser mais trabalhado para, de facto, marcar a diferença. Destaque para “Come and Save me”, que como single que é, fez reacender o coro de vozes que ainda resistiam no recinto. De referir também a presença em palco de um dos membros das Warpaint que não resistiu a dar uma perninha na música dos amigos.
Assim foi a noite de estreia, hoje haverá mais.
(Fotos cedidas por Hugo Lima)
(Fotos: Daniela Filipa)