
“Wir laden unsere Batterie / Jetzt sind wir voller Energie”
Todos somos robôs. Não encontro forma melhor de iniciar este texto, a não ser esta. Todos os amantes dos Kraftwerk são, à sua maneira, robôs. Robôs prontos a seguir dançando ao som da música de Ralf Hütter, Fritz Hilpert, Henning Schmitz e Falk Grieffenhagen, os atuais membros da banda. Um dos sonhos da minha vida de melómano era o de poder assistir a um espetáculo dos Kraftwerk, que por razões várias nunca tinha conseguido realizar. Valeu a pena a espera. Os anos em que fui carregando baterias no pressuposto de que o meu sonho se concretizaria, passaram num ápice. Assim, cheio de energia, lá fui eu rumo ao Coliseu dos Recreios. Os Kraftwerk estavam à minha espera, da mesma forma como eu esperei por eles a vida inteira. Sabia que não ia assistir a um concerto como tantos e tantos outros a que assisti. A arte dos Kraftwerk não se esgota nessa simples nomenclatura. São sempre acontecimentos especiais, e desta vez o extra veio na forma de um show em 3D. Não ia somente ouvir os Kraftwerk, mas também ver o som que tinham para me dar. Era esse o conceito, entre tantos outros, e eu estava preparado para o que poderia encontrar.
“Wir funktionieren automatik / Jetzt wollen wir tanzen mechanic”
À hora marcada, mais minuto menos minuto, começou a descarga de energia. Eles lá estavam, os quatro, ao lado uns dos outros, como é timbre acontecer em palco. Pouco se mexem, uma vez que a ideia é sermos nós a não ficarmos parados. E não ficámos. Ao longo de quase duas horas e vinte minutos, incluindo os dois encores, os Kraftwerk não deram descanso a quem os foi ver e ouvir. Quase todos os temas ditos obrigatórios soaram na sala e foram tocados de forma meticulosa, precisa, como não poderia deixar de ser. “Numbers”, logo a abrir, “Home Computer”, “Computer World”, e “Computer Love” foram os temas ligados ao conceito do surgimento dos computadores na sociedade, nas famílias, isto bem antes da proliferação dos computadores caseiros, já para não falar do uso bem mais recente dos portáteis. O disco de onde estes temas foram retirados, Computerwelt, é de 1981, e também por aqui, neste imaginário muito kraftwerkiano, se percebe o quanto estavam à frente do seu tempo. E não me refiro apenas à música produzida, obviamente. Outros temas foram tornando a noite numa instância dançante. Surgiram, quase de rajada, “The Model”, “The Man-Machine” e “Neon Lights”. Agora o conceito era outro, e o disco também. Die Mensch-Maschine aproxima o homem da máquina, perspetivando uma fusão entre ambos. E nós, os maiores sortudos da noite de Lisboa, lá íamos ouvindo, vendo e dançando como se fossemos máquinas, como se fossemos robôs. A viagem seguia, e constato agora, enquanto redijo este texto, que me perdi na autobahn sonora de tantos quilómetros, e de múltiplas saídas. Não consigo recorder-me do alinhamento. Sei que fechámos todos a porta de um qualquer Mercedes ou de um qualquer Wolkswagen e lá fomos nós fahr’n fahr’n fahr’n auf der Autobahn durante largos e bons minutos. Logo depois chegou a vez de se pedalar pela Côte d’Azur e Saint Tropez, pelos Alpes e pelos Pyrénées até chegarmos aos Champs-Élysées. A “Tour de France” não deixou ninguém indiferente. Faltava ainda a viagem pelo Trans-Europa Express, que chegou em boa altura. No entanto, foi pena os Kraftwerk não terem tocado “Europe Endless” e “Showroom Dummies”, de que tanto gosto. Mais para o final do concerto, Radioaktivität fez-se ouvir, mostrando faixas que encerram um duplo conceito: o da atividade da rádio, e o da radioatividade. Perfeitos, magníficos todos os momentos do show. Música e imagens projetadas em sintonia admirável!
“Wir sind auf Alles programmiert / Und was du willst wird ausgeführt”
O primeiro encore trouxe-nos “The Robots”, com os quatro robôs em palco. Sublime! Mas o público queria mais, e os Kraftwerk aceitaram fazer o que dizem os versos da canção: “We are programmed just to do / Anything you want us to”, e por isso foram ficando em palco para mais alguns temas, até que “Music Non Stop” meteu travões ao concerto. Uma suprema ironia guardada para o fim? Talvez não, até porque quem assistiu e viveu tão intensamente o concerto como eu vivi, saiu do Coliseu com a música non stop, non stop, non stop na cabeça e assim continuou, certamente, durante todo o percurso até casa. E a minha ainda está sobre esse efeito, agora que são já duas horas da manhã, enquanto finalizo esta narrativa. De modo que, ou estou muito enganado, ou hoje vai ser terrível adormecer. Enfim, pode ser que venha a sonhar em 3D…
notas finais: os versos em alemão que vão surgindo ao longo do texto pertencem ao tema “Die Mensch-Maschine”. Optei por indicar os títulos dos discos referidos em alemão, e as canções dos mesmos em inglês, uma vez que a mistura de línguas no universo musical dos Kraftwerk é uma constante, e por isso achei que deveria seguir essa mesma linha estética, mas a meu bel-prazer.
(Fotos: Everything Is New/ Alexandre Antunes)