Tivemos direito a medusas no concerto de apresentação do álbum Medusa de Capicua, no Lux-Frágil no passado dia 16 de Abril, uma quinta-feira primaveril.
Não eram verdadeiras (calma), deduzo que não seja fácil arranjar uma. Era um género de instalação-candeeiro com medusas que decoravam o palco e que me roubaram toda a atenção durante o período de espera para o concerto começar, pois aquilo foi a experiência mais próxima que tive do Oceanário e como sofro de uma miopia avançada, de longe, parecia-me quase verdadeiro.
Fiquei com vontade de pedir para levar uma para pendurar no meu quarto, tanto as medusas decorativas como a Capicua e toda a sua crew. Eu queria levar todos no bolso direito, porque só neste concerto percebi que Ana Matos fala e escreve num tom muito mais profundo do que se ouve ou se lê à primeira, não só como artista mas, principalmente, como pessoa.
Podia relatar o concerto da Capicua tal e qual como foi e isto ocuparia um páragrafo: Casa cheia, boas surpresas em palco, como o Valete e a Tamin, as apresentações calorosas e agradecimentos sentidos por parte da banda, um disco de 14 remisturas e 2 músicas novas e um “pretexto para renovar o portfólio dos concertos e poder estar aqui convosco”, segundo a própria.
Um público tímido no que toca a participação num concerto de hip-hop. Poderia ter havido mais mãos no ar e cabeças a abanar em tom de indignação, mas Capicua riu-se, bem disposta, falava connosco e pedia sempre mais barulho. Acabámos todos por fazer mais barulho. Foi um bom concerto e, para mim, surpreendeu (muito).
Já tinha ouvido Capicua ao vivo no NOS Palco, quase há um ano atrás se o recurso à memória não me falha. Lembro-me que o meu feedback foi algo como: “foi giro”. Não há pior que o dito “giro”, principalmente quando falamos de rap ou de hip hop, estilos de música que usam a palavra sobre a melodia, ou seja, que não tem todos os adereços que embelezam a música. Um estilo musical que pede, quase sempre, ao público que oiça a palavra, porque sem ouvir, sem escutar, a maioria do hip hop e do rap perde o sentido. Não é a toa que a sigla R.A.P vai para RHYTHM and POETRY, e o adjectivo “giro” equivale ao mesmo do que fazemos num serão de domingo à tarde pós-noite: Nada.
Capicua recebe-nos só com voz num prelude-quase-poesia com o excerto da faixa “Alfazema”, do primeiro álbum, que é uma ode às mulheres, aliás, e não poderia deixar de ser assim, Capicua canta muito para nós, mulheres. A mais evidente é a música Medusa, faixa homónima do álbum, onde cantou/falou e pediu atenção ao tema sensivel que é violência nas Mulheres. Como presente de ovo da Páscoa tardio, tivemos a companhia do Valete (esse GRANDE) que faz o duo juntamente com Capicua nesta faixa.
O mundo do Hip-hop português é um mundo de homens. Digo isto sem uma ponta de crítica, constata-se um facto que, os primórdios do hip-hop e do rap nascem com os homens. As cantigas de rua, do bairro e da escola da vida, as lutas de gangues, o sexo, o bling bling, as miúdas-e-o-dinheiro (I see she is a golddigger la la la) etc. A nível internacional a conversa já é diferente mas em Portugal, antes de Capicua, não havia quase mulheres a cantarem em palcos este género de música, tanto que o sentimento foi tal e qual como dizia o nosso querido Fernando Pessoa, “primeiro estranha-se, depois entranha-se”, porque não estamos habituados. É a “crew cor-de-rosa”. Ver duas mulheres com pronúncias muito cerradas, muito do “norte” a cantar/declarar que “Sem autoestima, postas de lado como um talher…não foi pra isso que nasci uma mulher!”, ou “Não vou cumprir com a puta da expectativa” é obra. E Capicua não cumpriu apenas, foi muito melhor, e sabe sempre melhor quando assim o é.
O concerto foi a distribuição das faixas remisturadas de Medusa. Mais beats, mais sintetizadores e mais drum que, a meu ver, tornaram as músicas de Sereia Louca mais rico. Saiu a ganhar, e não é por acaso.
Enquanto ouvimos a “Sereia Louca“ (música) com o beat feito pelo DJRide, o público aproxima-se e a força da letra com o baixo grave do beat e dos sintetizadores, é mais impactante, “pior que o meu canto há-de ser o meu silêncio”, termina a música. Eu repetia isto bastante entusiasmada, bastante activista, muy: “não pares de cantar, assim é que é”, mas a verdade é que Capicua desperta isto até aos que vieram só pela curiosidade.
Capicua varia entre temas mais pesados como “Medo do Medo“, um reportório de referências políticas e sociais, que é para ouvir com os ouvidos e não com os olhos, para temáticas que nos lembram a nossa infância como a faixa “Casa do Campo“, o cheiro a “pão quente, terra molhada e manjerico”, “porque é Primavera e está tudo mais apaixonado, mais derretido”.
Na companhia de M7, do ilustrador (cujos desenhos eram inacreditáveis e tudo aquilo feito on time, no momento) e do DJ, Capicua, nortenha, larga o tão típico: “Carago, tamos juntos pessoal! Façam barulho por vocês”.
Chega a preferida da artista, “Soldadinho”, a faixa remisturada por Sam the Kid e que sofreu das maiores transformações comparando com a original, ao contar agora com o vozeirão da Tamin: “Menina dos olhos tristes, o que tanto faz chorar? O soldadinho não volta, do outro lado do mar”. Eu não sou de choro fácil mas tenho a certeza que muitos não escaparam à lágrima tímida no canto do olho, principalmente no fim, quando vimos o abraço entre as três – “Uma sandoca à Tamin…!”. À moda do Norte, meteu Lisboa a rir.
Começam as despedidas: “MC é para Maria Capaz” – Capicua e M7 divertem-se no palco, cantam com entusiasmo e isso prende-nos à sua garra, e elas avisaram-nos: “não acreditaste em mim eu sei, para ser Rainha nunca foi preciso um Rei” canta M7, que assume maior protagonismo nesta faixa. Já para os lados do adeus, Capicua canta “Amigos Imaginários”, remisturada pelo produtor Virtus.
Venham as despedidas e com elas a loucura, pois as surpresas são sempre no fim. “VAYORKEN”. O público adere todo, é a mais conhecida e a letra é sabida pela maioria. Cada um de nós tenta cantar mais alto que o outro para acompanhar o fervor. Os pulos, as mãos no ar, os moves-à-hip-hop, vi muitos a darem tudo, e a Capicua não pediu menos que isso: “ a gente diverte-se imenseee”. Já dizia o outro que quem dá tudo a mais não é obrigado. Enganam-se. Para acabar em grande chega o encore e Capicua volta ao palco para ouvir “Barulho!!” na remistura de Stereossauro.
Há sempre coisas a dizer, temos sempre todos qualquer coisa a acrescentar, mas este concerto foi carregado de palavras. Capicua falou em vários sentidos, falou para o público, falou sobre ela connosco ou mesmo sobre nós. De um modo directo, trabalhado, bruto e cuidado. Diz que “Eles têm medo que não tenhamos medo” (excerto da faixa “Medo do Medo”) Mas a Capicua não tem. A Ana Matos Fernandes não tem.
(Fotos: Diogo Lopes)