Reportagens

Meo Kalorama 2022 – Dia 1: Kraftwerk calou 2manydjs após sunset de James Blake

É oficial: temos um novo grande festival em Lisboa. Um sunset ao som de James Blake, a cúmbia psicadélica dos Bomba Estéreo e a invasão de ovnis 3D dos Kraftwerk marcaram o primeiro dia da edição de estreia do MEO Kalorama. Contudo, uma falha manchou o arranque: 2manydjs só tocaram dez minutos devido a uma sobreposição de sons de palcos com Kraftwerk

Ao subirmos os degraus de entrada do Parque da Bela Vista, temos um déjà vu. Estaremos a entrar no Rock in Rio? Enquanto levantamos a cabeça, e convencemo-nos de que não comprámos bilhete para o dia de Anitta, um grande olho giratório disposto no imponente pórtico de entrada tira todas as teimas. É o MEO Kalorama, afinal. Entramos e vemos uma Bela Vista diferente: um palco à esquerda, à frente e à direita, todos ao alcance da vista, e tendas de cerveja com chancela San Miguel, assim como outros produtos espanhóis. Ufff, boa: não é um fiasco, não é um Fyre Festival, vai mesmo acontecer. Respiramos fundo. Se o cartaz inicialmente apresentado no final de 2021 prometia um elenco de luxo, para ceticismo de alguns e entusiasmo de outros, a organização do MEO Kalorama provou ter tiques de experiência, ou não fosse da autoria do mestre-programador Artur Peixoto da House of Fun, co-organizado com a espanhola Last Tour — e mostrou que pode vir a ser uma referência em Lisboa. Mas calma: o festival também cometeu erros (e pedidos de desculpa) de estreante.

Kraftwerk ©Cecile Lopes Photography

Enquanto os Kraftwerk enumeravam várias autoridades financeiras e judiciais em palco com Computer World«Interpol and Deutsche Bank/FBI and Scotland Yard/Business, numbers, money, people» —, os 2manydjs e Tiga estavam a terminar o set… cerca de dez minutos após terem começado. Ao contrário do Rock in Rio, o palco secundário Colina está muito próximo do principal — e havia conflito de som. A organização sacrificou a atuação da dupla belga em detrimento dos históricos alemães da música eletrónica. «Devido a conflitos de som entre os palcos MEO e Colina, fomos obrigados a interromper a atuação dos 2manydjs b2b Tiga», explicou a organização aos orgãos de comunicação social. «Pedimos desculpa pelo inconveniente e prometemos tê-los na próxima edição para uma atuação inesquecível», acrescentou.

O que aconteceu nos bastidores? Não se sabe. Especulações à parte, os alemães mostraram-se dignos da coroa. De óculos 3D na cara, uma enchente dançava no palco Colina ao som robótico dos Kraftwerk. Como homens-máquina — «semi-homens, super-homens» —, os quatro septuagenários da banda tocavam atrás de sintetizadores, imóveis como robôs, ofuscados pelo espetáculo de luzes 3D. As imagens iam de mão dada com a música: em Numbers, projetou-se um irrequieto código binário verde — «011001011010101» —, enquanto que em Spacelab um satélite apontado para Portugal entrou óculos 3D adentro, seguido de um ovni que aterrou no palco, passando pela Ponte 25 de Abril. A apoteose veio com a quadríade Autobahn, Das Model, Radioactivity e Tour de France, provando que a dança também se faz com poucos bpms.

James Blake ©Cecile Lopes Photography

Lusco-fusco e melancolia em James Blake

Num dia marcado por uma forte componente de música eletrónica, o arranque foi analógico. De sintetizador Moog armado, James Blake subiu ao Palco MEO ao fim da tarde e ocupou o flanco direito, atrás dos sintetizadores que o caracterizam. Bem-disposto e feliz por estar de volta («it’s been a long time, I almost don’t know what to say», disse em resposta a uma ovação do público), o cantor inglês não perdeu tempo e rapidamente pôs a audiência a dançar e a cantar consigo, ainda que o concerto pedisse, talvez, um palco mais pequeno e/ou um horário mais tardio. Canções como Life Round Here, Limit To Your Love ou Retrograde arrancaram as reações mais entusiasmadas do público que, embora tenha começado tímido, deu ali os primeiros dos muitos passos de dança da noite.

Rodrigo Leão ©Ana Viotti

Momentos antes, as hostes do palco MEO tinham sido já abertas por Rodrigo Leão, que se apresentou com o seu Cinema Project – A Estranha Beleza da Vida. Num concerto que envolveu também projeções multimédia e a participação especial do Coro Juvenil da Universidade de Lisboa, Rodrigo Leão estreou o palco principal do MEO Kalorama com uma apresentação dos seus últimos trabalhos e de alguns clássicos, como «Passión», para uma plateia ainda esparsa e a aproveitar o sol da tarde na relva do
parque da Bela Vista. Nos palcos secundários, a música portuguesa continuou a fazer das suas durante a tarde: Fred foi mostrar o seu mais recente trabalho, Series Vol 1 – Madlib, ao palco Futura, acompanhado por um brilhante vibrafone; e Xinobi apresentou-se no palco Colina, numa atuação que tinha tudo para correr mal dada a hora e o tipo de música, mas que se revelou uma bela festa dançante, estilo sunset.

Bomba Estéreo ©Cecile Lopes Photography

A cúmbia psicadélica

Fora dos palcos, as filas para comer começavam a espalhar-se por todo o festival. Há dois espaços dedicados à restauração: um perto da entrada, com hambúrgueres, pregos, cachorros quentes e várias bancas da Mister Pig de bifanas à moda do Porto e sandes de presunto com queijo da serra, outro com maior variedade, desde kebab a asiático, passando por opções vegetarianas. Por uma questão de salubridade das filas, aconselhamos a segunda opção. Enquanto os primeiros festivaleiros comiam, a primeira enchete do palco Colina acontecia: os colombianos Bomba Estéreo deram um dos espectáculos do dia com a sua cúmbia pop explosiva. Ou «cúmbia psicadélica», como os próprios apelidam. Vestida de rosa e saltitante, Liliana Saumet mostrou ser uma frotwoman poderosa, capaz de pôr uma Colina a saltar, fazendo lembrar a energia de Beth Ditto dos Gossip misturada com condimentos latinos.

Moderat ©Cecile Lopes Photography

De barriga cheia, era tempo de fazer escolhas: ou ver os robóticos Kraftwerk ou a eletrónica a esteroides dos 2manydjs, que acabaria por ser cancelado. O primeiro dia terminaria com outros homens-máquina: The Chemical Brothers e Moderat, que fecharam com chave de ouro. A partir da uma da manhã, perante uma multidão bem composta em frente ao palco Colina, o trio alemão apresentou a sua eletrónica introspectiva, musculada pelas baixas frequências, a tremer à boa moda de um subwoofer, que não deixa ninguém indiferente. Hits como Bad Kingdon, que teve direito a coros do público no refrão, e A New Error, que fechou o concerto numa wall of sound apoteótica, tornaram o concerto dos Moderat um dos momentos mais memoráveis do arranque de festival.

The Chemical Brothers ©Cecile Lopes Photography

Já The Chemical Brothers encerraram o palco principal com uma epopeia visual e sonora, cujo único objetivo é levar os pés a mexer, as mãos perdidas no ar e as almas ao rubro, como se sentiu com o clássico Hey Boy Hey Girl. Tal como pede o standard da música de dança, o clímax ficou para o fim:  Out of Control / Do It Again seguia-se de os sintetizadores salvíficos de Temptation dos New Order, finalizando com Galvanize. «Don’t hold back!», ouvia-se nas colunas do palco principal, onde Arctic Monkeys e Nick Cave vão pisar o palco nos próximos dias. Não nos parece que seja tempo de contenção. 

Autores: Alexandre R. Malhado e Ana Lúcia Tiago
Fotografia: Cecile Lopes Photography (excepto onde assinalado)

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