A vida tem destas ironias. Bairro do Amor, o álbum que foi rejeitado há vinte e cinco anos pela anterior editora de Jorge Palma, tem hoje o estatuto de clássico incontornável, de tal forma que acabou de ser reeditado pela Universal, proporcionando o pretexto para uma linda noite do Misty Fest.
A primeira parte do concerto foi toda ela dedicada à revisitação integral – pela mesma ordem e tudo – do disco que deu ao nosso inconsciente colectivo o whiskey velho de “Frágil”, o tabaco adocicado de “Dá-me Lume” e a erva serena de “Bairro do Amor”. A banda que acompanhou Palma no CCB (primogénito Vicente Palma incluído) não cedeu à tentação da nostalgia do papel-químico, optando – e bem – por reinventar o passado com novas roupagens: o tom jazzy, contido e aveludado do álbum original deu lugar a um registo mais solto e despenteado – mais rock’n’roll – onde as canções se sentiram confortáveis.
Fora Palma um outro artista qualquer, o concerto poderia muito bem acabar ali, com a missão oficial já devidamente cumprida. Acontece que Jorge é tudo menos “outro artista qualquer” e a sua generosidade em palco é um dos seus traços mais característicos. Resultado: quando a última nota do reprise de “Frágil” foi tocada, ainda a noite era uma criança. Como statement de que a sua obra não é só passado, Palma fez questão de dedicar a segunda parte do espectáculo a canções dos últimos dois discos (Vôo Nocturno de 2007 e Com Todo o Respeito de 2011), provando por dó mais ré que malhas mais recentes como “Olá (Cá Estamos Nós Outra Vez) e “Imperdoável” têm já lugar cativo no seu cancioneiro.
A terceira e última parte do concerto foi preenchida pelas canções-bandeira que se confundem com a nossa própria vida: a espuma de “Estrela do Mar”, o amor-malícia de “Cara de Anjo Mau”, o espelho amargo de “Portugal, Portugal” e por aí fora. Já no encore, vieram as malhas que mais do que emblemáticas são definidoras, hinos como “Jeremias Fora da Lei”, “A Gente Vai Continuar” e “Like a Rolling Stone”. Palma bem tentou disfarçar, falando do bandido Jeremias na terceira pessoa. Não adiantou: todos sabemos há muito que Jeremias é Jorge, o bom boémio que sempre “escolheu o seu lugar do lado de fora”. “A Gente Vai Continuar”, a canção que tantas vezes nos estendeu a mão para nos levantar, tira igualmente o retrato perfeito da alma andarilha de Jorge, o beatnick tuga que sempre habitou na “estrada para andar”. E, por fim, encerrando uma noite mágica, veio o clássico “Like a Rolling Stone”, que não sendo sua mas do mestre Dylan, diz tudo sobre Jorge Palma: “How does it feel/to be on your own/with no direction home/a complete unknown/ like a rolling stone”…
Um espectáculo que acima de tudo foi muito comovente, com uma cumplicidade e um carinho enormes entre público e artista. No final, nada de adeus. Apenas um “‘té já, amigo Jorge”.
Alinhamento
Frágil
A Escola
Minha Senhora da Solidão
Uma Vez
Eternamente Tu
Dá-me Lume
Só
Passos em Volta
Bairro do Amor
Boletim Meteorológico
Frágil
Página em Branco
Espécie de Vampiro
Quarteto da Corda
Olá (Cá Estamos Nós Outra Vez)
Imperdoável
Estrela do Mar
O Meu Amor Existe
Dormias Tão Sossegada
Cara de Anjo Mau
Portugal, Portugal
Encore
Canção de Lisboa
Jeremias Fora da Lei
Encosta-te a Mim
A Gente Vai Continuar
Like a Rolling Stone
[wzslider autoplay=”true” lightbox=”true”]
Fotos: Mário Romano