
Tudo, até mesmo um riff, está dependente de um contexto. Quem o diz é Kerry McCoy, cofundador dos Deafheaven, que defendeu que “até um riff de Cranberries, ao submeter-se a uma produção tão gelada como a de Burzum, consegue atingir uma atmosfera black metal“. O mesmo se aplica aos Deafheaven que, aquando ouvido/sentido/visto ao vivo, ganham a teatralidade do vocalista George Clarke e uma atitude que remete para o punk hardcore dos 90’s, ao estilo dos Refused. Em suma, tudo o que se pediria de uma tarde bem passada na casa de lafões, em 2008, mas com elementos dreamy do shoegaze e a agressividade atmosférica do black metal. E, sejamos francos, não faltou à festa o mal amado screamo. No passado dia 4 de março, um quase lotado RCA Club assistiu a esse contraste de conceitos que foi capaz de entusiasmar, estranhar e irritar – lá está, tudo dependeu dos gostos e, claro, do contexto.
Uma coisa é certa: Alvalade vestia-se de todas as cores, o RCA Club estava bem composto e, desde miúdos a graúdos, os Deafheaven montaram uma hora de espectáculo que agradasse a todos – e, na grande parte das vezes, conseguiram. As canções mais geladas, pesadas e viajantes, tal como “Brought To The Water”, tema que abriu o espectáculo dos californianos, encantaram os metaleiros “mais sérios” que, parados e de olhos fechados, hipnotizavam-se com os blast beats e riffs emocionais. A partir da segunda música, “Luna”, Clarke incentivou ao mosh – e as primeiras filas, dominadas por jovens ainda na puberdade, não pararam. Enquanto canções como “Gifts for the Earth” catalisavam o borbulhar da adolescência que pairava no ar, alguns dos metaleiros mais crescidos, um pouco aborrecidos, preferiram aproveitar para ir buscar cerveja. Ingrato ou não, os Deafheaven estavam a fazer algo de louvar: juntar pessoas, desafiar preconceitos e expandir limites. E tais aborrecimentos são uma consequência menor dessa ousadia grandiosa.
Vídeo de Rodrigo Mil Homens
A interação e simpatia de Clarke foi tanta, que, quais ossos do ofício, fez um corte na mão direita. Foram para o camarim e, após colocar um penso, voltaram todos para um brilhante encore, repescando canções do seu aclamado Sunbather (2013), que agitou o RCA Club. Tanto “Sunbather”, canção que dá o nome ao disco, como “Dream House” pôs Alvalade aos empurrões, agitando a cabeça violentamente, e a subir ao palco para o clássico stage diving. Purismos à parte, os Deafheaven são uns monstros de palco.
Quem também são vítimas de animosidade na comunidade black metal são os Myrkur, banda que abriu as hostes para os californianos. Com apenas dois discos lançados, já têm um lugar de destaque no cartaz parisiense do Hellfest, uma das maiores montras de metal do mundo. Apesar de dotada por uma voz assombrosa, a frontmann dinamarquesa Amalie Brunn só começou a caminhar pelos trilhos sombrios do metal em 2014, sendo mais conhecida pelas lides de moda e do cinema, mas já amealhou um número considerado de fãs – e isso notou-se nas primeiras filas do RCA. Vocalmente, Brunn não é Angela Gossow nem Chelsea Wolfe, mas compreende-se o fenómeno Myrkur: 3 homens lamacentos a construírem paisagens nórdicas em torno de Brunn que, ao encarnar numa deusa pagã, recita encantamentos para um tronco que suporta dois microfones – um para os cleans e outro para os growls. Apesar de M (2015) ter sido o centro do alinhamento, houve direito a “Dybt I Skoven”, do disco de estreia homónimo, e a uma versão serena de “Song to Hall Up High” dos míticos Bathory.
Fotografias de Francisco Fidalgo