
Cícero tem o dom da palavra. A língua é a mesma, mas vem do Brasil, e ele manuseia-a com perícia, recitando, cantando, cativando. Assim aconteceu no Estúdio Time Out, na sua quarta visita ao país, mas a primeira vez com a banda completa. Até então só os seus conterrâneos haviam visto a peça completa, e tanto que havia para desvendar… Instrumentos, sentimentos, palavras, versos e noites. Em Lisboa foi só uma e teve lugar no topo do Mercado da Ribeira, no Cais do Sodré, no Estúdio Time Out, mas Cícero continuou a espalhar amor por Portugal, numa mini-maratona de concertos que passou ainda por Ovar, Braga e Castelo Branco.
Contrariando o cruzar de línguas do piso inferior, o silêncio impôs-se para se ouvir o menino do Rio, que agora sente falta do mar. Hoje a viver em São Paulo, Cícero quis mostrar-nos a sua nova praia, banhada pelo mesmo mar, mas com areais diferentes, pisados por pessoas com histórias diferentes. Talvez seja o seu lugar seguro; ou talvez seja o nosso. Depois de um apaixonante Canções de Apartamento e de um melancólico Sábado, o terceiro álbum, assim carinhosamente denominado de A Praia, veio confluir as influências dos dois outros registos anteriores num registo novo, sem deixar de ser igual a sempre, igual a si próprio, como sempre foi. A primeira amostra, logo como tema de abertura, foi “O Bobo”, música dócil que rapidamente se desenvolve nos ritmos e nas camadas instrumentais, numa quase submersão sonora, que gradualmente se inverteu com a vontade em Cícero “Animar o Bar” com as suas palavras. Como se pudéssemos ficar bêbedos com elas. E o melhor é que não deixa ressaca, no dia a seguir podemos sempre voltar a ouvi-las, só não de tão perto. Mas, como o próprio referiu, os seus álbuns estão disponíveis para escuta e também download gratuito. Afinal de contas, o músico brasileiro acredita que a comunicação e a partilha são o maior trunfo, ultrapassando oceanos e barreiras linguísticas.
Acompanhado por quatro músicos, distribuídos entre percussão, guitarra, baixo, acordeão e teclas, Cícero mostrou-nos o seu show de banda, onde se trocam pedais e distorções, transmitindo o experimentalismo de que falava, explorando infinitamente aquela a que chamam de música popular brasileira. Ouvimos bossa nova em “Pelo Interfone” (a própria faz referência a Tom Jobim), revemos Chico Buarque ou Caetano, e deixámo-nos interpelar pelo seu jogo de palavras em “Vagalumes Cegos”. Ouvimos Cícero em todas as suas formas e expressões musicais – desde o primeiro Canções de Apartamento até ao mais recente A Praia. Mas o factor mais constante foi o seu sorriso, sempre presente, ora mais esperançoso em temas como “Tempo de Pipa” ou “Ponto Cego”, ora mais tímido, entre faixas mais melancólicas como “Soneto de Santa Cruz” ou “Açúcar e Adoçante”.
Na sala que o observava, muitos dialogavam com Cícero, apreciando a sua arte de escutar, cantando nos momentos em que lhes convinha responder-lhe; outros falavam, interrompendo os seus desabafos. Mas as canções de amor inventam o amor. E amor não faltou naquela sala.
Fotografias gentilmente cedidas por Dave Marques