Reportagens

Caetano & Gil || EDP Cool Jazz

Terá sido no ano de 1994, se não me falha a memória, que vi o show de Caetano e Gil no Coliseu dos Recreios. Na época, ambos haviam lançado o excelente Tropicália 2, e o formato do concerto que apresentaram em Lisboa, em tudo se assemelha ao da atual digressão “Caetano & Gil – Dois Amigos, Um Século de Música”. Duas vozes, dois violões, fantásticas canções, e isso basta. O referido Tropicália 2 acabou por sair em 1993, mas deveria ter visto a luz do dia um ano antes, pois só assim cumpriria em rigor o objetivo duplo a que se propunha. Por um lado, comemorava os 25 anos do Tropicalismo, e por outro celebrava os 50 anos de ambos os compositores e intérpretes. No entanto, e devido a impossibilidades de agenda dos dois amigos, o álbum acabaria por sair um ano depois do previsto. Caetano, sempre atento e falador, brincou com o facto, dizendo “Agora vai ser um disco de 26 anos de Tropicália. Assim fica até mais tropicalista.” Muito tempo passou desde essas declarações, e durante esse mesmo tempo continuei a ver os espetáculos (todos, sem exceção) que Caetano foi dando em Portugal. Sou conhecedor e colecionador fanático da obra do mano Caetano desde os meus 14 anos, e por isso não poderia perder mais esta oportunidade de o ver e ouvir, pelo que agradeço ao EDP Cool Jazz a imensa alegria que foi estar, uma vez mais, próximo do génio absoluto de Caetano Veloso. Também sempre adorei Gil, obviamente, e também fui assistindo com interesse à evolução da sua carreira, bem como fui marcando presença nas suas passagens por Portugal. A noite de ontem foi, por tudo o que disse atrás, marcante e muito especial para mim. Também terá sido para muitos dos milhares que assistiram ao concerto, mas eu sei bem que, no fundo, foi para mim que eles cantaram e tocaram… Não poderia ser de outro jeito.

Foi sem surpresa que o concerto abriu com “Back in Bahia”. Tem acontecido assim nos shows da tour europeia, e já tinha conhecimento desse facto. A canção de Gil transportou-nos até ao início dos anos 70, e o rock original transformou-se numa outra coisa, ao som dos dois violões que a tocaram. Caetano, logo a seguir, pegou no alinhamento e tocou a antiga “Coração Vagabundo” e a canção manifesto da eterna “Tropicália”. Gil apanhou a vez e avançou com “Marginália II”, cumprindo-se assim, com as duas últimas canções referidas, a passagem pelo movimento que ambos fundaram. “Caetano & Gil – Dois Amigos, Um Século de Música” é um espetáculo muito equilibrado, não apenas pelos momentos em que cada músico está mais em destaque (embora durante todo o alinhamento, os dois permaneçam sempre em palco), mas também por apresentar um repertório que vai cobrindo, tanto quanto possível, as várias fases das carreiras de Caetano e Gil. Melhor do que nunca, a voz do mano Caetano teimou em deixar-me pasmo de admiração. É o timbre único, o apuro do fraseado, a delicadeza do canto no seu todo! Se a sua voz é a mais perfeita, já o toque do violão pende mais para Gil. Na primeira parte do show, digamos assim, Caetano esteve mais em destaque, e por isso não foi de estranhar que as canções “É de Manhã”, “Sampa”, “Terra”, “Nine Out Of Ten”, “Odeio Você” e “Tomada de Luna Llena” tenham surgido, uma após outra, para meu total encantamento. Depois, logicamente, foi Gil quem tomou as rédeas maiores, e brindou-nos com várias canções, das quais terei forçosamente de destacar “Super Homem (A Canção)”, “Esotérico” e “Não Tenho Medo da Morte”, esta última numa interpretação minimalista admirável, ouvindo-se apenas a voz de Gil e um ou outro dedilhar nas cordas soltas do seu violão, mais uns toques dos dedos do músico na caixa do seu instrumento, marcando o ritmo do canto. A noite, que tinha começado fria e com ameaças de chuva, tornou-se mais tranquila, mais serena, embora por vezes o vento se fizesse ouvir através dos microfones de palco. O concerto foi avançando e o ritmo do carnaval baiano tomou conta dos últimos momentos. “Filhos de Gandhi” trouxe o afoxé do outro lado do Atlântico e contagiou todo o público que cantava “Oh, meu Deus do céu, na terra é carnaval / Chama o pessoal / Manda descer pra ver / Filhos de Gandhi”. Foi bonito, este carnaval fora de época. Os baianos recolhiam-se envoltos num mar de palmas, para voltarem instantes depois para um primeiro e último encore. O inevitável “Desde Que O Samba É Samba” foi, uma vez mais, memorável. É um tema que já nasceu clássico. Duas canções depois, o show terminaria… Senti falta de algumas músicas, confesso. A que mais me desgostou não ter ouvido foi “Haiti”.

O concerto foi uma enorme festa, disso não restam dúvidas. Foi também um privilégio ter estado quase duas horas na companhia de dois dos maiores nomes da música do mundo. Cantam em português, e espalham por todo o lado a riqueza da nossa língua, insuflando-lhe um sotaque muito particular: o do génio. Em palco estiveram dois monstros da música popular brasileira, e isso é raro ver-se. O EDP Cool Jazz permitiu que milhares de pessoas tomassem parte desse acontecimento, e por isso faço-lhe a minha respeitosa vénia. No entanto, vénia maior, mais sentida e duradoura, terá de ser feita a Caetano Veloso e Gilberto Gil. Para ambos, a eternidade será sempre uma instância muito curta.

Alinhamento:

  1. Back in Bahia
  2. Coração Vagabundo
  3. Tropicália
  4. Marginália II
  5. É Luxo Só
  6. É de Manhã
  7. Sampa
  8. Terra
  9. Nine Out of Ten
  10. Odeio Você
  11. Tomada de Luna Llena
  12. Eu Vim da Bahia
  13. Super Homem (A Canção)
  14. Come Prima
  15. Esotérico
  16. Tres Palabras
  17. Drão
  18. Não Tenho Medo da Morte
  19. Expresso 2222
  20. Toda Menina Baiana
  21. São João, Xangô Menino
  22. Nossa Gente
  23. Andar Com Fé
  24. Filhos de Gandhi
  25. Encore:
  26. Desde Que o Samba É Samba
  27. Domingo no Parque
  28. A Luz de Tieta

Fotografias gentilmente cedidas por Fernando Mendes

Comments (2)
  1. ademaramncio diz:

    ”Haiti” é uma música muito citada e adorada por aqui,e que é só do Caetano mesmo,a parceria de Gil foi só no arranjo

  2. hugo diz:

    carlos, muito bem escrito o artigo. perdoe-me corrigi-lo: ele estavam a tocar para mim. abraço, hugo.

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