Parece que foi ontem mas já cá cantam dez anos desde que A Naifa lançou o icónico Canções Subterrâneas. Tenho uma grande admiração por esta banda, talvez a mais conceptual das bandas portuguesas. O seu conceito é tão arrojado como elegante, assentando em duas ideias de força: subversão da pop e da música tradicional portuguesa, enxertando-a uma na outra; centralidade das palavras que se cantam, as palavras dos poetas. Ora sabemos bem que nenhuma destas ideias constitui o caminho mais curto para o sucesso comercial. O pessoal da pop fica desconfiado da guitarra portuguesa e o pessoal do fado fica desconfiado de uma bateria e de um baixo eléctrico. A questão dos nichos é lixada: em que raio de prateleira da FNAC havemos de procurar os seus discos? Da mesma maneira, a relação dos consumidores de música popular com a poesia também nem sempre é a mais fácil. A Naifa ignora olimpicamente estas dificuldades e ainda bem. Não é o marketing que lhe interessa mas sim a pura arte, sem concessões. Por isso, esta noite no Tivoli foi muito especial. Não foram dez anos quaisquer que se comemoraram na cidade que os viu nascer. Foram dez anos de uma integridade artística inegociável. Dez anos em que o grande João Aguardela arranjou tempo para fundar A Naifa, nos deixar demasiado cedo e regressar depois em puro espírito. Aguardela fez questão de aparecer no Tivoli (todos sentimos a sua presença), orgulhoso pela su’A Naifa estar “há dez anos a rasgar os horizontes da portugalidade”. Dez anos aclamados com comoção por todos os fãs que responderam à chamada da sua banda de culto.
Para encerrar este ciclo, ofereceram-nos o delicioso As Canções da Naifa, disco que congrega nove covers que nos têm sempre acompanhado ao longo destes dez anos de concertos. Como seria de esperar pelo seu DNA, as canções revisitadas são todas portuguesas, cantadas em português e com palavras a que se devem prestar toda a atenção. Atravessam toda a metade do século XX, desde um fado da Amália dos anos 50, até uma canção dos Três Tristes Tigres dos anos 90. Reúnem num só corpo quatro tradições diferentes da música portuguesa: o fado (Amália e Paulo Bragança), a música popular portuguesa (Vitorino e José Mário Branco), os ícones do Festival da Eurovisão (Fernando Tordo e Simone de Oliveira) e a pop (GNR, Três Tristes Tigres e Mler Ife Dada). Quatro tradições unidas pela fina sensibilidade poética e musical de A Naifa. As palavras são assinadas por grandes letristas e escritores como o António Lobo Antunes. Ouçam, por favor, com atenção a letra de “Bolero do Coronel Sensível que Fez Amor em Monsanto”, uma das canções com maior violência emocional alguma vez escritas em português.
Como seria de esperar, As Canções da Naifa foram tocadas na íntegra, tendo dominado o alinhamento na primeira e terceira partes do concerto. Assistimos assim encantados à brilhante “naifização” destes clássicos, canções dos outros tornadas suas, assimiladas na sua inconfundível linguagem: a subversiva guitarra portuguesa de Varatojo, o groove simples e tonitruante do baixo de Sandra Baptista (antiga companheira de Aguardela dentro e fora de Os Sitiados), a bateria possante de Samuel Palitos, a voz intensa de fadista da sensual e carismática “Mitó”, e a alquimia que nasce entre os quatro- minimalista, provocatória e sofisticada. Não é por acaso que dois grandes do punk português, Varatojo (Peste & Sida) e Samuel (Censurados), estão reunidos n’A Naifa. Este projecto musical é tão subversivo como antes o punk fora.
Mas as canções originais dos discos anteriores não ficaram de fora. A meio do concerto houve um interlúdio todo ele dedicado à revisitação das canções antigas. A Naifa fez agora o processo inverso, “desnaifizando” as suas canções: a “Mitó” mostrando-nos que também sabe tocar viola; o Varatojo, arrumando a guitarra portuguesa e fazendo-se também à viola; a Sandra substituindo o baixo pelo acordeão (e como os Sitiados nos vieram à memória) e o Samuel tocando uma bizarra bateria electrónica. Foram assim tocadas (ao longo de todo o concerto) canções de todos os álbuns anteriores d’A Naifa: quatro das Canções Subterrâneas, cinco do 3 Minutos Antes da Maré Encher, quatro do Uma Inocente Inclinação Para o Mal e apenas duas do Não Se Deitam Comigo Corações Obedientes.
“A Tourada”, antes clássico do Tordo mas agora canção de A Naifa por direito conquistado, foi porventura a mais acarinhada pelo público. Sensível a esse afectuoso acolhimento, A Naifa encerrou o concerto interpretando-a novamente. Não houve uma única alma no Tivoli que não tivesse cantado “A Tourada” em uníssono com a “Mitó”.
Quando tinha dezassete anos, João Aguardela escreveu numa carta a um amigo as seguintes palavras: “O primeiro passo para a verdadeira mudança é por baixo, pelas convenções, pelos preconceitos, pelos costumes, andar descalço na rua sem nada a dizer.” Honrando o seu imenso legado, A Naifa continua subvertendo todas as convenções, preconceitos e costumes da música portuguesa. Descalça pela rua, sem nada a dizer.
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(Fotos: Mário Romano)
Alinhamento:
1- Sentidos Pêsames (GNR)
2- Gosto da Cidade/ Marianna e Chamilly
3- Subida aos Céus (Três Tristes Tigres)
4- Antena
5- Imenso (Paulo Bragança)
6- Inquietação (José Mário Branco)
7- Bolero do Coronel Sensível que Fez Amor em Monsanto (Vitorino, António Lobo Antunes)
8- A Tourada (Fernando Tordo, Ary dos Santos)
9- Apenas Durmo Mal
10- Émulos
11- Monotone
12- Esta Depressão que Me Anima
13- Na Aula de Dança
14- O Ferro de Engomar
15- Bairro Velho
16- Hécuba
17- Alfama (Mler Ife Dada)
18- Señoritas
19- Desfolhada Portuguesa (Simone de Oliveira, Ary dos Santos)
20- Rapaz a Arder
21- Todo o Amor do Mundo Não Foi Suficiente
22- A Verdade Apanha-se Com Enganos
23- Libertação (Amália Rodrigues, David Mourão Ferreira)
24- Música
25- Tourada (repetição)