Antecipando os concertos desta semana no Teatro Maria Matos (4 e 5 de Março), foi precisamente lá que estivemos à conversa com três dos membros da banda, Carlos Guerreiro, Pedro da Silva Martins e Sérgio Nascimento. Uma ideia foi recorrente: a criação enquanto acto de liberdade.
Sérgio, reza a lenda que tudo começou nos Correios da Avenida de Roma, num encontro fortuito com o Carlos Guerreiro…
Sérgio: Mas o bichinho já vem de longe, desde 2013, quando os Deolinda e os Gaiteiros de Lisboa tocaram juntos. A experiência foi muito gira, daí a vontade de voltar a partilhar um palco com o Carlos, juntando todos estes amigos.
Pedro, não sei como é que consegues escrever tantas canções por unidade de tempo. Ouvi dizer que é das nove às cinco, tipo escritório…
Pedro: Tento manter alguma regularidade porque isto de escrever é como um músculo: quando não estou com a mão na massa tenho mais dificuldade. Convém não perder a prática. E fico feliz por ser ao mesmo tempo o meu ganha-pão. Tem havido sempre encomendas…
No início foste sondado só para escrever…
Pedro: Sim, mas quando começaram a enunciar a trupe, Carlos Guerreiro e companhia, pensei: eh lá, que turma incrível, também quero tocar. Ainda para mais, estávamos em pleno confinamento. Nada melhor para fintar a reclusão.
Carlos, estás nestas andanças da música popular portuguesa, de intervenção e não só, desde o 25 de Abril. Integraste o GAC com o Zé Mário Branco e demais rapaziada. Tocaste com o Zeca e o Fausto…
Carlos: Sim, tinha 19 anos então e o 25 de Abril mudou tudo na minha vida, distanciando-me dos meus próprios pais, de Almada, da minha namorada. Foi como se tivesse começado uma segunda vida.
Pedro: O Carlos não é só um instrumentista, é um inventor de instrumentos, um inventor de sons…
Não pinta apenas, inventa as próprias tintas…
Pedro: … e os pincéis e as telas… É um privilégio poder trabalhar com alguém assim.
Pedro, tu escreves todas as canções, palavras e música, mas curiosamente encontrei na estética dos Cara de Espelho mais pegadas dos Gaiteiros de Lisboa (os arranjos heterodoxos do Carlos!) e d’A Naifa (a voz inconfundível da Mitó!) do que dos próprios Deolinda…
Pedro: Com estas novas cores o quadro nunca seria igual a Deolinda, e o que não faltam são matizes na nossa paleta. O baixo do Nuno Prata é totalmente diferente de todos os baixos com que trabalhei. O Serginho acrescenta a sua tonalidade mais pop. Misturando todos os pigmentos surge o fresco único dos Cara de Espelho.
Como foi todo o processo?
Sérgio: Devido ao confinamento, íamos trocando ficheiros. O Pedro enviava o primeiro esboço, o Carlos propunha um arranjo, o Luís fazia a sua magia na guitarra, e eu ia encaixando as peças do puzzle. Acabado o confinamento, veio a parte melhor: tocarmos todos juntos. Tudo fluiu porque o pessoal não quer saber dos egos. Se o Carlos tocar cinco instrumentos e eu nenhum, não me importo nada, o que me interessa é se a canção beneficia com isso.
Quando se fala dos Cara de Espelho vem sempre o chavão “super-grupo”, por todos provirem de bandas conhecidas. Imagino que não se sintam muito confortáveis com o epíteto…
Carlos: É um pau de dois gumes: se por um lado é um crédito, por outro lado é uma responsabilidade em cima das costas. A sorte é que já somos crescidinhos, ninguém tem nada a provar.
Seis artistas e nenhum culto narcísico. Como é possível?
Pedro: É que a única coisa que nos podemos gabar enquanto banda é que somos os gajos mais porreiros…
Sérgio: Os nossos percursos anteriores também ajudam. A maior parte de nós nunca assumiu o papel de frontman. Sentimo-nos bem longe das luzes…
Carlos: A minha primeira grande escola foi o GAC (Grupo de Acção Cultural), onde o foco nunca estava na canção mas sim na causa que a movia. Com o José Afonso sucedia o mesmo: quando eu e o Fausto o acompanhámos numa digressão por Espanha, o Zeca perdia mais tempo a falar do que a cantar. Mais tarde, nos Gaiteiros, o contexto político já era bem diferente, mas como tinha sido formado nessa escola – e, ainda para mais, chegando ao palco já “quentinho” – havia uma comunicação engraçada com o público. Confesso que nos espectáculos dos Cara de Espelho sinto falta desta interacção.
Pedro: Mas cada palavra cantada pela Mitó tem um peso invulgar, é assim que a Mitó comunica com o público.
Pedro, porque decidiste agora escrever canções de intervenção?
Pedro: Porque sinto que são necessárias. Sempre escrevi canções sobre os mais variados temas, como o amor, mas vivemos num momento político muito particular, em que é preciso estar mais atento à sociedade. Os meus comparsas sentem o mesmo.
É uma resposta à entrada em cena do “Doutor Coisinho”?
Pedro: Também. É uma resposta aos problemas do nosso tempo. São canções de liberdade. Seis artistas criando juntos sem amarras.
Carlos: Por ser tão específica, creio que a “Doutor Coisinho” envelhecerá mais depressa. Acho que nunca iríamos fazer uma canção sobre outro político, mas o Doutor Coisinho representa um perigo real para Portugal, muitos portugueses estão a brincar com o fogo…
Carlos, tu participaste no movimento de canto de intervenção que surgiu após o 25 de Abril, e agora, 50 anos depois, voltas à carga…
Carlos: Tenho tido muita sorte na vida. Se acabei por tocar e ser amigo dos meus ídolos, foi porque fui tropeçando neles por acaso. Quanto ao GAC, tinha muita qualidade musical mas as letras eram demasiado datadas. Por isso, nenhuma canção do GAC passa hoje na rádio. E após o 25 de Abril os cantores, antes unidos, começaram-se a dividir por capelinhas, os do PCP para aqui, os do PS para ali, os da UDP para acolá. Era tudo muito sectário. Perderam-se amizades…
Pedro, se algumas canções sacrificam alguma poesia em nome da eficácia da mensagem, outras são mais líricas. A minha favorita é a “Político Antropófago”, cheia de aliterações viscerais, parece que vem das entranhas…
Pedro: Sim. Há qualquer coisa de sombrio e visceral na voz de Mitó que eu quis explorar. Não é de agora. Já há uns anos que queríamos fazer juntos uns fados igualmente viscerais, que acabavam sempre em suicídio…
Sentes-te um Pedro Ayres Magalhães a moldar a tua Teresa Salgueiro…
Pedro: Felizmente tenho tido sempre o privilégio de escrever para grandes vozes: a Ana Bacalhau, a Cristina Branco, a Ana Moura, o António Zambujo. São artistas que admiro imenso, tentando moldar a minha escrita à voz e personalidade de cada um. E quanto mais conheço e gosto da pessoa, mais o fato fica à medida. Daí estar a conhecer novas possibilidades da voz da Mitó, que quero explorar em novas canções.
Carlos, tu vens da música popular portuguesa, da reinvenção das nossas raízes, e nos Cara de Espelho há malta com uma linguagem mais pop rock, como o Nuno Prata, que foi baixista dos Ornatos, ou o Serginho, que começou no punk. É fácil esse diálogo entre diferentes sensibilidades e tradições?
Carlos: De facto, é essa a minha origem, eu sabia praticamente de cor toda a recolha de música tradicional portuguesa gravada pelo Michel Giacometti. Havia no pós 25 de Abril um sentido de urgência pois parecia que todos os dias morria uma forma musical (ou um instrumento) de raiz portuguesa. Durante algum tempo achei que Deus me tinha posto no mundo para salvar a música popular portuguesa da anunciada extinção. Claro que as coisas são mais complexas do que parecem e eu nunca salvei fosse o que fosse. Entretanto, comecei a interessar-me por construir os meus próprios instrumentos de sopro. Nos Gaiteiros, para driblar a monotonia, tinha de arranjar alternativas à gaita de foles. É um privilégio, e um desafio, poder agora emprestar esta caixa de ferramentas aos meus compinchas.
Descontadas as diferenças, todos têm tido percursos de alguma forma ligados à música tradicional portuguesa: o Carlos no GAC e nos Gaiteiros, o Pedro e o Luís nos Deolinda, a Mitó n’A Naifa, o Sérgio acompanhando o Godinho…
Pedro: E ao mesmo tempo não é fácil definir a coisa. O que é que me faz identificar a música como portuguesa quando a ouço?
Carlos: As palavras em português não bastam. A música de Carlos Paredes é instrumental e está cheia de portugalidade…
Pedro: Eu acho que uma tradição musical já traz um idioma lá dentro. As palavras que hão-de ser escritas já estão contidas na própria música. Por isso, as minhas tentativas para escrever jazz em português nunca resultaram. O jazz tem outro idioma a chamá-lo.
Para que serve a arte? Tem necessariamente de ser engajada, criticando e transformando o mundo? Ou o belo basta por si mesmo?
Pedro: Somos livres criaturas. A arte é, acima de tudo, um acto de liberdade. Não quero ficar prisioneiro de nenhuma estética. Procuro reinventar-me para não me aborrecer. Quando me pedem, por exemplo, para escrever um fado, respondo sempre que não sei fazê-lo, e dá-me gozo subverter as regras do género. Liberdade é também isso, não nos deixarmos amarrar pelos códigos.
Estão bem acompanhados: A Garota Não e os Luta Livre também têm a intervenção no seu ADN. São os ares de tempo?
Sérgio: Talvez. Se bem que o hip hop nunca deixou de intervir. Nos anos 90 protestávamos com guitarras. Os meus putos protestam hoje com hip hop.
Pedro: Sim, os músicos não criam num vazio, vão respondendo ao que acontece à sua volta. Em 2011, senti a necessidade de escrever a “Parva que Sou”. Em 2024, temos que nos olhar ao espelho outra vez.