Aqui entramos novamente no território do sagrado. Os Pixies, a banda que definiu a viragem indie dos 80s para os 90s, inspiradora de Cobain, Beck e uma multidão de outros, estão de volta. Na verdade, o regresso aos discos deu-se há dois anos, com Indie Cindy, cuja gravação Kim Deal abandonou a meio. Esse disco colocava um ponto final num hiato de edições que durava desde Trompe Le Monde, de 1991, e trazia muita expectativa, que acabou por ser defraudada.
Entretanto, os Pixies já vieram várias vezes a Portugal, já trocaram de baixista por duas vezes, parecendo ter agora estabilizado a formação – Black Francis, Joey Santiago, David Lovering e agora Paz Lenchantin. Com esta estabilidade, vieram várias coisas: a banda voltou a funcionar como um conjunto a tempo inteiro – e não uma série de velhos amigos (ou conhecidos?) que se juntava de vez em quando para ensaiar ou para gravar sob pressão; e a nova baixista parece ter efectivamente ganho o respeito dos veteranos. Sinal disso mesmo é o facto de ter assinado música neste novo disco, algo que durante décadas foi honra quase exclusiva de Frank Black.
A questão que se coloca na análise a este disco é se o devemos comparar com Indie Cindy ou com os discos da primeira vida dos Pixies? É que, perante a primeira hipótese, este novíssimo Head Carrier é um claro passo em frente. Perante a segunda, falta qualquer coisa que o eleve até esse patamar de excelência.
Na verdade, as expectativas e a desconfiança eram tão altas depois de Indie Cindy que as impressões que nos tomam ao começar a ouvir Head Carrier é que temos os Pixies de volta. As melodias estão todas lá, a voz de eterno adolescente de Black, a guitarra fluida e cristalina do injustamente subvalorizado Santiago, as harmonias vocais Black/Lenchantin, a dicotomia ‘trademark’ de “quiet/loud” que levou Kurt Cobain a fazer uma coisa chamada “Smells like teen spirit”, tentando assumidamente imitar os Pixies.
Há várias vantagens face ao tomo anterior. Em ambos, diga-se, há a sensação de uma banda à procura daquilo que definiu em tempos o seu som, procurando replicar aquilo que os fez únicos e idolatrados. A questão é que, em Indie Cindy, esse esforço era esquemático e mal sucedido, como se a busca não tivesse dado os frutos almejados. Estavam lá os alicerces, mas a banda não sabia como decorar as salas e as paredes, com várias músicas “a la Pixies” mas que não eram particularmente inspiradas, alternadas com uma agressividade sonora que roubava espaço à melodia. Agora, em Head Carrier, há mais melodias, bonitas e bem feitas, num disco mais ‘friendly’ e que, agora sim, consegue dosear o ruído e a beleza como nos melhores tempos – ouça-se “Baal’s Back”, por exemplo. O disco começa a rodar e, em vez de acharmos que estamos a ouvir uma banda altamente influenciada pelos Pixies, sabemos de imediato que estamos a ouvir os Pixies, eles próprios, tal a marca de água que o seu som agora volta a carregar.
Por outro lado, ouvimos ecos de coisas que Frank Black tem andado a fazer, de forma quase sempre excelente, sendo ignorado pelo mundo. Black, que assumiu que toda a sua enorme produção musical está agora confinada aos Pixies, perdeu a obsessão de separar os dois mundos, e a banda ganha com isso. Em vez de compor músicas “à Pixies”, Black está a aproveitar a sua aparentemente inesgotável fonte de música nova para a ir adaptando à banda da sua vida. Que ganha com isso, como podemos ouvir em “Bel Esprit”.
De salientar ainda a contribuição de Lenchantin, cuja voz límpida e cristalina é aproveitada em quase todos os temas, devolvendo-nos o jogo masculino/feminino que contribuiu para algumas das melhores canções da banda. “All I think about now”, a título de exemplo, é interessante. É a única cantada apenas por Lenchantin, composta por esta, que a aceitou cantar apenas se Black escrevesse a letra e a dedicasse a Kim Deal. Estranho? Sim, mas de certa forma a única maneira de uma banda particular como os Pixies lidar com esta passagem de testemunho. E sim, soa demasiado a “Where is my mind”, mas não me vão ouvir a queixar disso.
Face a Indie Cindy, o que temos é uma espécie de recentragem da banda, um verdadeiro novo começo depois de uma falsa (re)partida. Tem melhores canções, de um conjunto que parece mais coeso, mais confiante, mais feliz, mais motivado para o que aí vem.
Voltando a início deste texto, é claro que temos o problema de estar em território sagrado. E o Evangelho segundo Black escrito há mais de 20 anos é uma herança muito pesada de seguir, sobretudo por uma malta que anda à volta dos 50 anos e assenta a sua vida numa música adolescente para os adolescentes que pensam (alguém se lembra do college rock?). Head Carrier não é dos melhores discos dos Pixies, mas é facilmente melhor do que a grande maioria do rock que ainda se faz por aí. Mais, é um álbum que não cora de vergonha ao pé dos discos dos 80s/90s, e isso é já um enorme feito do qual, francamente, já não esperávamos que eles fossem capazes.
Um disco de que os fãs vão gostar e que, ouvido sem preconceitos, consegue ser relevante em 2016.