Não queria nada que olhassem para estas breves linhas convencidos que estão a ler uma crítica ao mais recente disco de Nick Cave. Enfatizo, desde já, a ideia, para que não se esqueçam dela. Nem agora, nem durante o que for escrevendo até ao final deste texto. Preferia antes, até por ser essa a minha maior intenção, que o entendessem como um desabafo sobre a vida, sobre a música, sobre a música que a vida nos obriga, por vezes, a encarar, escutando-a…
Para aqueles que, como eu, encontram na música uma espécie de eco distante dos deuses, o sopro dos anjos e dos diabos do nosso contentamento, encontrarão em Skeleton Tree um imenso festim. O décor da festa, no entanto, é um lustroso e pesado pano negro caído sobre os ombros dos que nela circulam, almas vagueando ao sabor do fel da vida, fantasmas lívidos das feridas que os vão trespassando. É este o cenário, é este o espaço, são assim as quatro paredes claustrofóbicas que edificam todo o álbum: perda, dor, catarse e vingança. Na verdade, pouco ou nada me interessa mais neste Skeleton Tree do que ouvir, por entre instrumentos e vozes, a força do poder do amor. O poder vigoroso de um amor destroçado, e a vitória, por meio dessa mesma tragédia, da vida que permanecerá assente numa qualquer estranha faculdade que não sabemos bem como identificar ou nomear. O padecimento que serviu de base a todas as 9 canções do álbum (direta ou indiretamente relacionadas com o desaparecimento de Arthur) não apaga a chama que ilumina (embora mal se perceba a sua existência) o que o presente obriga a viver. Daí o sabor a elegia, que aos poucos se transforma (ou será melhor dizer transformará?) em fuga, em embrião de um tempo que só poderá ser melhor do que o tempo ainda vivente. Assim, será a vida, e o que resta dela, a derrotar o que o anjo da morte quis decepar. Que bela vingança, de facto!
Skeleton Tree ajuda a perceber algumas coisas sobre as quais não estamos interessados em pensar e muito menos em viver. Como a finitude a que estamos sujeitos, por exemplo (“They told us our gods would outlive us / But they lied”, como se ouve em “Distant Sky”), a nossa finitude e a dos outros, que são tão nossos como nós próprios, ou até ainda mais, uma vez que descendem de nós. Os nossos deuses, os deuses que criamos com o nosso sangue, sobreviverão ao seu próprio desaparecimento. A custo, mas sobreviverão. A razão é simples de entender, e de tão simples parece abjeta: duramos enquanto não passarmos também, e nesse rio de memórias vamos navegando em tempestades que tanto nos destroem, como nos tornam rochedos de deceção ou esperança. Aqui, vivem-se estas duas circunstâncias. Skeleton Tree faz-nos chocar com a ausência que deriva dessa mesma finitude. Por isso, as perguntas não poderão ser outras: como lidar com ela, como lidar com o vazio que anda connosco, de mãos dadas e a reclamar, ao minuto, a sua presença? Quem se pode atrever a dar uma resposta consentânea com a dimensão da tragédia mais íntima e destruidora que se pode viver? Nick Cave deu-a, e essa mesma resposta acaba por me deixar completamente estupefacto e mudo, incapaz de pronunciar algo mais acima destas simples banalidades.