Qual é a orientação musical de Bruno Pernadas? O indie rock de Julie & the Carjackers? A exotica de How can we be Joyful in a World Full of Knowledge e da sua sequela – Those who Throw Objects to Crocodiles Will Be Asked to Retrieve Them? Ou coisas mais eruditas, que pressentimos correr subterrâneas por debaixo da fachada pop?
Estas interrogações, há muito cochichadas nos bastidores do jornalismo musical, tiveram agora um ponto final. Com uma enorme coragem, enfrentando a barreira do preconceito, Bruno acabou de assumir publicamente as suas mais profundas tendências, lançando um puro disco de jazz: o instrumental, denso e anti-pop Worst Summer Ever.
O anúncio abalou a indústria musical lusitana. Poucos falaram do acontecimento; a maioria optou pelo cobarde silêncio. Fui há dias a uma conhecida loja de discos de Lisboa e, dos dois discos que Pernadas acabara de lançar, só Crocodiles se encontrava nos escaparates. De Worst Summer Ever nem o mais ténue vestígio. É como se nunca tivesse existido.
E contudo ele existe. Vi a sua capa na net e excitei-me a ver aquelas quase pin-ups tagarelando numa nave espacial. Encontrei no mercado negro uma cópia digital e ouvi-o à socapa num beco esconso, sempre com medo de ser apanhado. É maravilhoso. É erudito. É belo. É comovente. É Bruno Pernadas. Mas tudo isto, rogo-vos, que fique entre nós. Se disserem que ouvi e amei um disco de jazz, três vezes vos negarei. Não me julguem. Preciso de continuar a escrever na imprensa pop. Tenho filhos, casa alugada, contas para pagar…
Nos estritos termos do nosso pacto de silêncio, prosseguirei. A melhor forma de compreender Worst Summer Ever é comparando-o com o seu disco irmão. Na sofisticação de ambos, percebemos que só poderiam ser filhos do mesmo pai. Não conheço outro músico português com um gosto tão requintado. Não consigo sequer imaginar Pernadas tratando das coisas do dia-a-dia, como preencher o IRS ou mudar o óleo do carro. Vejo-o como puro espírito, levitando eternamente no mundo das puras formas. Bruno é a sua arte, a sua arte é Bruno; não o distraiam, por amor de Deus, com o Ronaldo e a dívida externa. Deixem o homem criar em paz, sem interferências, o máximo número de obras. A história da arte agradece.
Tudo o resto separa, contudo, os dois discos. Crocodiles é veraneante, acessível, hedonista e orgulhosamente superficial, como uma serigrafia do Warhol; Worst Summer Ever é difícil, profundo, estóico e outonal, como um filme do Bergman. O jazz é assim, não é para meninos; é para ouvintes de barba rija, que gostam de acordes lixados, melodias invulgares e saltos para o desconhecido. Não quero fazer, contudo, qualquer juízo de valor. Amo a leveza de um e o peso do outro, como Adão certamente amou os seus dois filhos – mesmo Caim, o assassino.
Ou talvez haja outra qualidade a unir os dois álbuns: o seu poder cinematográfico. É como se houvesse uma câmara de filmar ligada a cada instrumento, traduzindo cada nota musical para a sua imagem equivalente. Crocodiles evoca idílios tropicais, nativas de flores nos cabelos acolhendo-nos no abrigo dos seus seios redondos. Já Worst Summer Ever não atraca num só porto: “This is not a Folk Song” acontece no mesmo areal branco de Crocodiles; “Before it Gets too Late” é bulício nova-iorquino, com os dois saxofones falando ao mesmo tempo, atropelando-se num nervoso e maravilhoso contraponto; “Love versus Love” tem o travo de uma casa de ópio em Xangai, com a guitarra e o saxofone rodando entre si o mesmo langoroso cachimbo; e “Granado Wire” é film noir dos anos trinta, com o seu saxofone misterioso e fumarento enredando-nos na carnívora teia de uma femme fatale.
Mas, mais do que a imagética, o que mais impressiona em Worst Summer Ever é a sua capacidade de nos comover. Melancolia, serenidade, obsessão, esperança, desamparo, loucura; sentimos tudo de todas as maneiras, como se Álvaro de Campos tocasse contrabaixo dentro na nossa cabeça. Desculpem-me a frontalidade mas quem não se emociona com o saxofone apocalíptico de “Love versus Love” tem uma pedra da calçada onde devia haver um coração.
É possível que Bruno Pernadas não saiba assinar um cheque cruzado, admito-o. Mas, sendo o maior, a isso está desobrigado. A sua senda é outra: descobrir, uma a uma, todas as notas que o nosso coração faz quando cai estatelado no chão. Escreveu-as finalmente numa pauta. Chamou-lhes Worst Summer Ever.