A vida no ghetto é tramada. Eu sei. Eu sou de Camarate.
Camarate não é só a localidade onde caiu o avião que levava a bordo um conhecido político português. Este lugarejo colado às redes do aeroporto é sede de alguns bairros designados problemáticos. Fora uma ou outra escaramuça quando o rei fazia anos, uma ou outra meia-dúzia de sopapos entre garotos à porta da escola, vivi todos os 28 anos que lá estive em tranquilidade. Por isso, não, eu não sei coisa nenhuma sobre o que é viver no ghetto.
Dito isto, não é fácil falar das motivações de Kendrick Lamar sem parecer pretensiosa, porque afinal, o que é que eu sei sobre segregação? O que eu sei é que esta foi a melhor altura possível para editar To Pimp A Butterfly. Os ânimos continuam exaltados, ainda com o pensamento em mortes como as de Michael Brown e Eric Garner, e Kendrick Lamar veio esfregar mais sal numa ferida que os EUA andam a tentar sarar há quase 150 anos.
Mas à medida que vamos entrando neste disco, percebemos que não se trata apenas de segregação, das diferenças entre crescer num ghetto ou num bairro pacífico como o meu e lidar com as dificuldades que vêm disso. Este disco também tem a ver com o upgrade de estatuto depois de good kid, m.A.A.d city e há momentos de conflito, como em “u”, plena em acusações de uma terceira pessoa a Lamar. Este foco na dimensão pessoal vai-se definindo ao longo do trabalho com a recorrente saída “I remember you was conflicted…”, e dá-nos um insight sobre o trajecto de Kendrick Lamar, sobre a transição drástica entre as realidades pré e pós good kid. E há confrontos com o lado mais material da indústria, o dinheiro e as relações de interesse expostas em temas como “For Sale?” ou “Institutionalized”.
Se me perguntarem, direi que To Pimp A Butterfly é um disco de celebração. A herança afro-americana e africana é exultada de várias formas. E o mote é dado logo aos primeiros segundos: “Every nigga is a star”, um reforço da confiança de uma minoria que vive nesta ambiguidade entre a ideia de cidadão de segunda e o orgulho na sua identidade. Talvez seja até a pedra basilar deste disco, lançada primeiro através de “i”, que reforça a ideia da aposta na criatividade, no respeito e na identidade de cada um, na transformação do produto final (a música) em meio de combate às línguas afiadas do preconceito e do estereótipo e com isto transformar mentalidades. E esta celebração estende-se à música, no funk de “King Kunta”, no reggae de Assassin em “The Blacker The Berry”.
Fértil em referências, To Pimp a Butterfly vê o seu desfecho com um sample de uma entrevista a 2Pac, criativamente formatada a sugerir um diálogo entre os dois rappers e é aqui que chega a redenção. Kendrick Lamar compreende a sua posição como artista e como o que cria pode ter impacto em Compton e noutras Comptons por aí.
2015 ainda nem vai a meio, e digo sem vergonha que To Pimp A Butterfly vai estar na minha lista de fim de ano. Se me centrei nas palavras e nas histórias deste disco, é somente porque acima dos beats e das produções (e sim, a lista de colaborações é muitíssimo respeitável, ela própria uma celebração dos géneros presentes – George Clinton, o sempre presente Dr. Dre, Snoop Dogg, Flying Lotus, Pharrell Williams e a incontornável aparição de 2Pac), está um conceito fortíssimo sobre mudança – connosco e com o que está a nossa volta. No fim da linha, as palavras são o símbolo máximo do hip hop. É difícil dizer que impacto social este disco pode ter, ou se terá algum sequer, mas foi para mudar cabeças que foi escrito. O respeito, a descoberta e a valorização da identidade cultural e individual são conceitos transversais e é isso que me inspira neste disco.
É o que eu acho, mas eu nunca fui discriminada, e ainda por cima sou branca. O que é que eu sei sobre isto?