Dez anos passados da revolução, nasceram os Ena Pá 2000, ajudando Portugal a palpar os contornos da modernidade.
Eu começaria por afirmar – porque afirmar coisas ainda é de borla – que tiveram um papel determinante na definição cultural da Terceira República, empurrando, juntamente com Paradise Café, Gina e Leisuresuit Larry, a rapaziada da minha geração para um inusitado e prematuro lugar de saudáveis obscenidades. Ainda assim, talvez por não se levarem eles próprios a sério, nunca lhes foi dado o mérito devido. É uma coisa muito portuguesa. Dizer é uma coisa muito portuguesa também é uma coisa muito portuguesa. Mas a verdade é que sempre tiveram pouco relevo no espaço público, quase não há entrevistas, poucas menções nos mídia, apesar de toda a gente (talvez excepto alguns dos mais recentes fedelhos, imagino) saber muito bem quem eles são. É rara qualquer tipo de documentação, entrevista, diálogo, footage, do Manuel João Vieira fora de personagem. A página do Wikipédia dos Ena Pá tem 38 palavras.
Já as personagens, essas fazem parte de uma obra bastante prolífica que vai de exposições de pintura, música, programa de tv, candidatura presidencial, livros, escultura, homeopatia, prémios em congressos de oftalmologia, disco-bares, 3o lugar no campeonato hindu de massagem lombar, frigoríficos, pederastia analítica etc. O programa de televisão Portugal Alcatifado, feito com o que parece ser a quase total ausência de meios (embora com o apoio do Nuno Artur Silva), é 100 vezes melhor que os palonços dos Gato Fedorento mas nem sequer parece ter atingido estatuto de culto; cada episódio tem cerca de 500 visualizações no YouTube. Pobre Orgasmo Carlos.
Enfim, eu conheci o Manel João em 2005 num merdoso restaurante da Horta e surpreendi-me por até ali o encontrar em modo Lello Marmelo. Partilhava ele a mesa com uma quarentona atraente e preocupante, certamente figurante de palco, quiçá sua cônjugue, apresentando aquela estética entre o sensual e o sem abrigo, meretriz boémia com 180mil km no bucho (collants rasgados maquilhagem sinistra cabelo esgroviado), pronta a agradar marinheiros e dando a certeza a um mancebo de 20 de que, com ela, aprenderia umas coisas, para além de adquirir sida. Eis a heroína das histórias dos Ena Pá 2000 ali à minha frente, pensei. Perguntei-lhes o que estavam ali a fazer naquela ilha horrorosa, respondeu-me Lello Minsk com um sorriso javardo, apontando através da janela para o que me pareceu ser um vulcão a meio de mar incerto, que iam tocar àquela ilha que tinha um pico, numa incontornável e enapálica sugestão de falo – um enafalicismo, portanto. Desejei boa sorte e ele mandou-me para o caralho, o que levei como elogio. Ficámos imediatamente amigos, embora sem nunca mais termos tido qualquer tipo de interacção desde então, ele não me respondendo às mensagens que lhe envio no Face.
Os Enapá não se armam ao pingarelho. A poesia de Manuel João oscila entre o quase sublime de algumas das suas rimas efectivamente aproximando-nos de deus (por exemplo em “querem-me ir ao cu caralho foda-se merda foda-se caralho” ) enquanto outras claramente preguiçosas e forçadas, numa espécie de ausência de ambição ou onde o desejo de simplicidade anti intelectualismo eu aprendi a apreciar. Ainda assim diria que construíram um universo único, um pouco na tradição de – outro injustamente pouco celebrado – José Vilhena. Um universo nonsense, ordinário e luminoso, repleto de calendários de mulheres nuas, avós defecando na sala, caniches enforcados, felácios e cuninlingus, prostitutas deficientes, adolescentes ninfomaníacas. Há uma tangente com o Irvine Welsh pouco radio-friendly.
Mas são também soberbos músicos que nunca almejaram fazer música muito original. Quase todas as suas canções soam a algo que já ouvimos, mas com extraordinária proficiência instrumentista, dominando com singular destreza a composição harmónica do formato canção – se é a voz e as rimas badalhocas que os tornam identificáveis, toda a gente, incluindo crianças norueguesas, os trauteiaria.
Se a banda portuguesa que mais aprecio fala da condição humana em cenários apocalípticos em que fantasmas esqueléticos deambulam pelas ruas de Braga murmurando Rimbaud por entre cadáveres escorbúticos, o herói dos EnaPá é o gajo normal, pouco educado, preguiçoso, azarado, tropeça em cagalhões e vê o seu carro indevidamente rebocado. Vive para o tinto e a-do-ra mulheres, especialmente as promíscuas. Não ambiciona salvação espiritual, mas sim a próxima mamada – e não é esquisito.
Talvez fosse difícil hoje em dia atingir a relativa notoriedade que ainda assim alcançaram com letras de aparência racista, homofóbica, misógina etc. Fazendo eu parte do patriarcado semi-branco seria imprudente comentar muito esse aspecto. Ainda assim parece-me evidente que a brincadeira com os estereótipos foi sempre feita sem malícia e em que o verdadeiro foco da piada esteve sempre, como um espelho, na javardice de grupo a que todos pertencemos. De resto, apesar de não ser difícil de encontrar patêgos e patêgas que sem hesitações acusem Manuel João de objectificar a mulher, é justamente esta a constante heroína da obra dos EnaPá, poderosa e respeitada, musa de diversos formatos, capaz de salvar o fraco homem da merda da sua existência. É sempre este quem se submete à mulher e não o contrário. A mulher fica sempre por cima. Excepto quando está a .. enfim.