A velhice é um bicho que vai saindo aos poucos de dentro de nós. Tem a vida inteira para revelar-nos essa paulatina tarefa, sem pressas, como que a enganar-nos, traiçoeira e vil. Um bolor carnal que desgasta a pele e os ossos, mostrando-se cada vez mais triunfante. O que ganhará com isso, não sei. Ninguém sabe. A ideia de fim pode trazer-nos doces e amargas surpresas, não é verdade?
É nisto que pensa quem agora passa por mim. Terá mais anos do que aqueles que aparenta. Por falta de melhor expressão, diria ser um homem velho. Conheço-o bem, ele é que já se esqueceu de mim. Sou uma sombra que existiu na sua vida, um passado muito antigo, ainda em calções, de violão debaixo do braço e marcas de transpiração no corpo todo. Tento chamá-lo, mas ele não me ouve. Nem me vê. A surdez do tempo não se recupera, e nunca se consegue olhar para o passado de forma nítida. Na verdade, o homem velho deixa a vida para trás e avança, segue em frente, já numa outra rua como se nada fosse. Eu sou o resto, essa sobra de um tempo que já foi o seu. Que já foi o meu também. O antes e o agora de braços dados, na mesma passada lenta rumo ao que a vida ainda pode trazer.
Nem de propósito, há crianças que brincam nas ruas. Antes, nos anos de chumbo, o homem velho não era mais do que um jovem adulto, e nas ruas pouca gente brincava. As crianças viviam atrás das portas fechadas a medo e a cadeado. A brisa da tarde trazia muitas preocupações, mas também o aconchego macio da carne, do sexo morno e doce de quem sabe que essa talvez fosse uma das poucas recompensas da vida em tempos frios e amargos. Compor uma canção ajudava. Cantá-la também. Uma qualquer canção para lançar depois do carnaval. Já quase nem lhe serve o Carnaval, agora. Há máscaras que já não se mudam, de tão coladas à pele. Já de nada servem, rugosas e frágeis, pele em risco de validade.
Mas o homem velho segue de cabeça levantada, parecendo mais altivo do que é. Talvez haja algum orgulho no modo como se movimenta e afaga o cabelo, talvez se entenda um pouco como farol deste tempo e de outras décadas. O homem velho sabe que tem gente atrás de si. Sabe e reconhece todos eles, menos aquele que, por dentro, lhe alarga agora os passos, tentando torná-los mais fortes e viçosos, aquele que usava colares de missangas da Bahia e que gostava de sentir os caracóis dos seus cabelos soltos e leves, esvoaçantes e eternos. O homem velho sabe ainda que a vida nunca está feita, que oito décadas são quase nada, e que belezas, dores e alegrias passaram como sempre passa a vida, num sopro de alma, num ápice de tempo.
O homem velho tem tudo na ponta da língua. Os filhos, filmes, livros da sua própria existência não o abandonam nunca. As canções também, mas essas são outra coisa, já há muito que não são apenas suas. Muitas delas, na verdade, contam histórias ainda por escrever. Talvez um dia se descubra que em cada homem velho existe uma criança quase sem rosto, quase sem rasto, mas que ainda vai tendo força e vontade de agitar a voz, lembrando que a arte arde, enquanto a tarde cai. E a vida, essa, seguirá o seu destino, perdendo-se no abismo das esquinas.
*a canção “O Homem Velho”, presente no álbum Velô, de 1984, inspirou a escrita deste conto. 2022 foi o ano das comemorações das oito décadas de vida de Caetano Veloso, a quem o Altamont presta, mais uma vez, a sua homenagem.