Beck Hansen. A história de um “loser” que ganhou lugar cativo na história da música como reciclador de lixo pop e introspectivo escritor de canções. Um dos inventores da nossa modernidade.
O meu irmão mais velho chama-se Beck e nasceu sete anos antes de mim. Foi ele que me levou pela primeira vez a um bordel pop, tinha eu dezasseis anos. A partir desse dia, fiquei orgulhosamente puta nos meus gostos musicais, gravando na mesma cassete Mão Morta e Nancy Sinatra, Slayer e Nina Simone, Sonic Youth e Dusty Springfield. Mas eu sou um menino. O meu irmão Beck seria capaz de enxertar essa malta toda na mesma canção. E fazê-la soar bem. Contemos a sua história.
Em 1989, Beck foi de viola às costas até Nova Iorque, emergindo na cena anti-folk de East Village. Trocando por miúdos, Beck pegou na tradição séria da folk e subverteu todas as suas convenções. Enxertou-lhes ruído, surrealismo e disparates. Regressou a Los Angeles com uma mão à frente e outra atrás, mas foi neste caldo estético que fez os seus bizarros e inaudíveis primeiros discos: Golden Feelings e Stereopathetic Soulmanure. Podem ser esquecíveis mas inauguram traços que atravessarão toda a sua obra: o amor pela folk e o gosto pelas mixórdias experimentalistas. Nunca devemos renegar a nascente onde tudo começou.
Tudo mudou em 1993 quando Beck gravou na cozinha de um amigo o single “Loser”, lançando meia dúzia de exemplares numa obscura editora independente. Vá-se lá saber como, “Loser” chegou às rádios e tornou-se um êxito instantâneo. Cobain morreria pouco depois. “Loser” preencheu o vazio. Estava encontrado um novo hino para a geração X. Cheirando-lhe a cifrões, a Geffen imediatamente o convidou, nascendo o seu primeiro grande álbum: o Mellow Gold de 1994. Pode não passar de uma colecção avulsa de demos caseiras, mas é a melhor colecção avulsa de demos caseiras de sempre. Nele nasce outro elemento fundamental na obra de Beck: o inventivo namoro com o hip hop, onde uma torrente de palavras à Kerouac acasala sem complexos com riffs de blues, cítaras psicadélicas e refrões pop. Beck aceitou assinar com a dita major, na condição de poder continuar a publicar em editoras independentes. Naquele tempo, ter um sucesso comercial nos circuitos indie era mais vergonhoso do que apanhar herpes rectal.
Para repor a sua credibilidade “independente”, Beck apressou-se a lançar cá para fora o sujo One Foot in the Grave (ainda publicado em 1994). Este disco é mais acessível do que os primeiros mas regressa ao despenteado anti-folk: blues do Mississippi trucidado com guitarras desafinadas e a sua voz blasé. Beck dirá que o seu principal pedal de distorção é o conteúdo insano das suas letras. E di-lo-á muito bem.
Em 1996, Beck deixou-se dos seus complexos indie e fez um álbum acessível mas inovador: o icónico Odelay. Nunca mais abandonaria este caminho à Beatles de democratização do experimentalismo. Nesta obra-prima, e com a ajuda preciosa dos Dust Brothers na manipulação de samples, Beck dissolve as fronteiras dos géneros musicais, misturando-os habilmente na sua moulinex. Nesse sentido, do ponto de vista estritamente musical, Beck foi mais influente do que os Nirvana, definindo a essência estética dos anos 90: inventar o futuro desmontando o passado, baralhando as suas peças e remontando-o outra vez. Reduzir, reciclar, reutilizar. Nas mãos de quem sabe, o lixo pop é uma valiosa matéria-prima.
Em 1998, Beck regressa ao folk com Mutations. Mas desta vez estamos longe das águas lo-fi de One Foot in the Grave: é um álbum cuidadosamente produzido por Nigel Godrich. Demarca-se também da overdose de samples de Odelay: tudo é tocado pela sua banda ao estilo orgânico de Neil Young. É um disco charneira na obra de Beck porque inaugura a sua faceta de escritor de canções, sempre melancólico e introspectivo. E com resultados brilhantes. Para mim, a seguir a Odelay, é o segundo disco mais belo de Beck. E original. Pode namorar com o country rock à vontade que nunca soa a Harvest, e flirtar à vontade com o psicadelismo que nunca sabe a Revolver. Qual Armando Vara da pop, Beck consegue roubar a todos e soar sempre a ele próprio. Mais. Consegue que uma guitarra pedal steel saiba a futuro longínquo, um saboroso western spaghetti doss anos 3000. Digam o que disserem, Beck será sempre um músico imenso.
Em 1999, Beck reinventa-se novamente, desta vez com o funk demente de Midnite Vultures – um disco que tresanda a sexo, licra, dinheiro e cocaína. Os Dust Brothers voltam a mexer nos botões certos. O álbum é irónico, dançável e estupidamente divertido. A homenagem a Prince é assumida, transformando o seu kitsch de pechisbeque em ouro pop art. Numa época em que o indie e a música negra americana estavam de costas voltadas, Beck foi de novo incrivelmente influente. Há também uma dimensão política, uma sátira implacável ao deus dinheiro e às suas desbragadas fantasias, tão definidoras da cultura americana. Como todos os grandes artistas, Beck é um forasteiro na sua própria terra.
Em 2002, o bipolar Beck regressa à melancolia introspectiva de Mutations com o acústico Sea Change, de novo com Nigel Godrich ao leme. Desta feita, o quadro depressivo é bem mais agudo. Agradecemos à bandalha da mulher de Beck ter-lhe partido o coração, pois foi desse desgosto que nasceu mais um bonito disco. As melodias podem não ser tão inventivas como as de Mutations mas em compensação há uma maior unidade estética, como se todo o álbum fosse um único longa tema: a canção de um homem desfeito, contemplando à volta da fogueira a lua, as estrelas e a sua dor sem fim. O piscar de olho a Nick Drake é mais do que bem-vindo.
Em 2005 e 2006, é tempo de Beck regressar à promiscuidade de Odelay com os competentes Guero e The Information. Se a pista de dança agradece os novos singles, não deixam de ser álbuns algo previsíveis, tentando à força repetir a fórmula de Odelay. Ora, é sabido que a magia nunca obedece a receitas: ou acontece ou não acontece. A magia não aconteceu desta vez mas tomara a maioria da música que é feita por aí ter metade da qualidade pop destes dois discos. Nem um nem outro envergonha Beck um milímetro que seja.
Em 2008, Beck oferece-nos o desigual Modern Guilt. Se por um lado gostamos da sobriedade e concisão que lhe empresta Danger Mouse, por outro lado achamos que a segunda parte do disco perde alguma frescura melódica. Não deixa porém de acrescentar mais algumas grandes canções ao já seu impressionante cânone.
Em 2014, Beck esquece-se de tomar o lítio e recai na depressão de Morning Phase. É um disco que segue as pisadas de Sea Change, com tudo o que isso implica de melancolia country. A diferença é que Beck assina agora sozinho a produção, e Nick Drake faz o obséquio de dar o lugar a Simon & Garfunkel. É um pouco mais deslavado do que o seu irmão-gémeo mas neste tipo de disco introspectivo alguma monotonia melódica até lhe dá algum encanto. O saldo final é positivo.
O último capítulo é que é algo triste. Sempre pensei que Beck pertencesse àquela casta rara de músicos que não sabem fazer maus discos. Enganei-me. Na passada sexta-feira, Beck colocou nos escaparates das lojas o menos feliz Colors. E atenção: o problema não é o namoro per se com a música de dança manhosa que passa no Urban. Nada tenho contra a pop descomprometida, quando os arranjos são saborosos e as melodias são bonitas e contagiantes. O problema é que Colors é má pop descomprometida, com melodias desinspiradas e o mau gosto sempre escondido debaixo das saias. Desta vez, o rei do pastiche espalhou-se ao comprido.
Mas relativizemos o desaire. Todos os grandes artistas tiveram os seus dias maus. Bowie insultou-nos com o insuportável Never Let Me Down, Dylan ofendeu-nos com o criminoso Knocked Out Loaded, Neil Young traiu-nos com o sinistro Re-ac-tor. E todos eles reergueram a cabeça outra vez. Estou certo que acontecerá o mesmo com o meu irmão. Para bem do futuro da música pop.