Para ouvir depois de ler, ou fazer exatamente o oposto. Pouco importa. Importante é não deixar para trás os duplos prazeres que aqui deixamos. Livros e discos, pois claro!
Música e Literatura parecem formas muito diferentes de expressão, mas desenganem-se os que pensam não haver porosidade suficiente entre essas duas artes maiores, de modo a não poderem dialogar entre si. Sem ser necessário lembrar que a poesia e a canção vivem, desde sempre, de maneira umbilicalmente próximas, queremos hoje trazer à baila essas duas manifestações artísticas, chamando a vossa atenção para alguns discos que nasceram por via de uma escrita anterior (contos, romances, poemas, ensaios), factos que muitas vezes desconhecemos. Refiro-me aos livros, e aos discos neles inspirados, obviamente. Em ambos os casos, conhecê-los é uma mais valia, e nisso se explica a razão deste texto. A ordem de apresentação é cronológica. As avaliações de qualidade, caso para aí se inclinem, essas ficam por vossa conta, embora julguemos serem todas de inegável merecimento.
Megalopolis (1972) – Herbert Pagani: Ora aqui está uma obra verdadeiramente única! Desde logo por ter a duração de uma longa metragem, mas também por ter sido pensada para ser ouvida como quem vê um filme. Parcialmente inspirada no livro Il Médioevo Prossimo Venturo – Demain le Moyen Age (1971), de Roberto Vacca, matemático e pensador respeitado pela comunidade académica italiana, Megalopolis apresenta-se como uma espécie de musical para uma sociedade maioritariamente distópica, em que a poesia, a liberdade, o amor e a solidariedade entre homens e mulheres se vê fortemente ameaçada face à vertigem das máquinas e das tecnologias, pelo colapso dos sistemas de energia, do poder desenfreado de homens que parecem enlouquecidos e esquecidos da importância que deve ser dada à conservação da sua própria espécie, bem como à preservação do planeta em que vivem. Herbert Pagani, voz importante da canção italiana (e francesa também) dos anos 60 e 70, nasceu na Líbia, tendo começado a sua aventura artística através do desenho e da pintura. Teve um percurso sempre muito singular, e Megalopolis foi, sem sombra de dúvida, o seu apogeu enquanto compositor e intérprete. O disco apresenta, entre algumas das canções que nele existem, diálogos e ruídos ouvidos nas ruas, sons do quotidiano, anúncios publicitários. A ação da obra passa-se nos Estados Unidos da Europa, na derradeira década do século passado, governado por um governador-geral de nome Maxime Van Der Love, com a particularidade de ter as orelhas de De Gaulle, o sorriso de John Ford, o nariz de Nixon e o olhar de Joana d’Arc. No que diz respeito à música, Megalopolis é uma ópera-rock francesa, tipo de espetáculo apreciado no tempo da sua aparição. Mas é também, e sobretudo, uma obra visionária, como é fácil perceber pelos tempos que atravessamos. Tempos de desumanização e de frieza, tempos em que a Natureza começa a dar sinais evidentes de colapsar, levando-nos com ela para um abismo sobejamente anunciado.
Journey To The Centre of The Earth (1974) – Rick Wakeman: Quem nunca leu Viagem ao Centro da Terra (1864), de Júlio Verne, nunca foi criança. Avançar pelo interior do nosso planeta na companhia do professor Otto Lidenbrock, do seu sobrinho Axel e de Hans, um caçador da Islândia, faz parte do roteiro literário de qualquer adolescente que se preze, descobrindo, nas profundezas exploradas, um mundo que julgávamos já ter desaparecido há muito, com dinossauros e outros inusitados animais supostamente extintos da terra. Perigos, aventuras, momentos de grande exaltação, mas também outros de inegável coragem e sofrimento. Viver, mesmo tratando-se de uma existência de papel, esse mundo paralelo ao nosso, terá sido, como o próprio confessou, um dos prazeres de leitura que se foi mantendo na vida de Rick Wakeman, desde jovem adolescente até à sua idade de músico adulto. E tanto assim foi que em 1973 começou a imaginar, artisticamente, como poderia adaptar o texto para a sua linguagem musical, coisa que em pouco tempo se tornou uma quase obsessão. Juntou os músicos pretendidos e partiu, também ele, à aventura. A par de David Hemmings, que emprestou a sua voz à narração do texto, contou ainda com David Measham, com o English Chamber Choir, Danny Beckerman e Wil Malone para construir, contra a vontade da sua editora, o que chamou de “dream team”. O resultado, como não poderia deixar de ser, foi soberbo, vendendo-se mais de catorze milhões de cópias. Wakeman teve de reduzir o álbum para pouco mais de trinta minutos, por via das restrições do formato do vinil, sendo que só bem mais tarde, depois de incríveis peripécias que implicaram o desaparecimento do material gravado, é que o músico conseguiu gravar Journey To The Centre of The World de forma completa. E aí sim, o prazer da audição se pode tornar total! E por isso, no disco, conseguimos viver os mesmos estados de alma que a leitura das páginas de Verne nos oferece. Há grandiosidade, mas também momentos de grande lirismo. O esforço prog valeu a pena, e ainda hoje é compensadora a sua audição.
Diamond Dogs (1974) – David Bowie: Este não é apenas mais um disco de Bowie. Antes pelo contrário. Ao seu oitavo álbum de estúdio, David Bowie chuta, uma vez mais, o seu passado recente para canto, colocando um ponto final no glam e abrindo portas a um estilo que, pouco tempo depois, viria a ser conhecido como punk. O som algo sujo do disco, meio amador, dá-lhe um charme especial, sobretudo se tivermos em conta que nele já não se ouve a guitarra do enorme Mick Ronson. Quem a assume é o próprio Bowie, e bem. Basta lembrarmo-nos, por exemplo, dos acordes iniciais da soberba “Rebel Rebel”, ainda hoje com magia suficiente para nos fazer pular de contentamento logo aos primeiros segundos de audição. Inspirado no famoso romance 1984 (1949), de George Orwell, Diamond Dogs é um disco abertamente político, conceptual, que nos apresenta uma visão apocalíptica do mundo. Halloween Jack, a nova personna artística de David Bowie, é um “real cool cat / and he lives on top of Manhattan Chase” numa imaginária e decadente Hunger City (“The elevator’s broke so he slides down a rope / Onto the street below”) que em muito faz lembrar o negrume da sociedade do Grande Irmão. Diamond Dogs mistura o universo do romance de Orwell com um imaginário livre que Bowie criou para dar corpo ao seu álbum de 1974. Canções como “Big Brother” e “1984” mostram bem a aproximação ao livro do romancista nascido na Índia, na cidade de Motihari. David Bowie queria, naquele tempo, adaptar 1984 para o teatro, mas foram muitos os problemas para obter os direitos da obra, pelo que, rendido à impossibilidade da concretização da sua vontade, acabou por trazer o imaginário do romance para o seu disco de estúdio, o fascinante Diamond Dogs.
The War of The Worlds (1978) – Jeff Wayne: Todos conhecemos o romance de H. G. Wells, de 1898, assim como todos vimos algumas das várias versões que passaram para o grande ecrã, mas já não garanto que muita gente tenha ouvido o disco que Jeff Wayne fez tendo essa obra literária como base, o que é uma pena. Como bem sabemos, o romance é um clássico da literatura de ficção científica. Com um enredo passado nos arredores da capital inglesa, nos primeiros anos do século passado, é no medo e no caos que vivemos ao longo de quase todo o romance. Os marcianos atacam a terra e vão aniquilando milhares de pessoas através do seu raio da morte. Alimentam-se dos humanos, e a vitória sobre o nosso planeta parece mais do que certa, até que um desfecho inesperado acontece: de repente, todos os invasores começam a morrer por não serem imunes a uma bactéria terrestre, o que não deixa de ser irónico. As bactérias, que ao longo da história dos tempos tantas mortes provocaram à nossa espécie, são agora a causa da nossa sobrevivência. Jeff Wayne resolveu, em boa hora, trazer para a música essa obra-prima. Fê-lo de forma surpreendente logo desde a abertura, com a poderosa voz de Richard Burton a dizer-nos coisas assustadoras, mas de uma beleza sonora sem limites. Depois chegam as canções, superlativas, as personagens que cantam e contam os episódios, as peripécias trágicas que envolvem o ouvinte desde o início até ao fim, sem quaisquer quebras de entusiasmo, sem fraquezas, até porque apenas a excelência impera nesse duplo álbum. Com as participações especialíssimas de Justin Hayward (dos míticos The Moody Blues) e de Phil Linnot (dos igualmente míticos Thin Lizzy), The War of The Worlds é um inspirado momento sonoro que continua a cativar fãs em todo o mundo. É difícil definir-lhe o estilo, mas algum melodismo prog com toques de rock orquestrado fazem a festa ao longo de pouco mais de hora e meia. Para sempre ficam as frases iniciais na voz de Burton: “No-one would have believed, in the last years of the nineteenth century, that human affairs were being watched from the timeless worlds of space.” Para sempre ficam também temas como “The Eve of the War”, “Forever Autumn” ou “Thunder Child”.
Macunaíma Ópera Tupi (2008) – Iara Rennó: Ao contrário do herói sem nenhum caráter do livro de Mário de Andrade, de 1928, este é um disco onde essa qualidade não falta. Antes pelo contrário, ela é quase excessiva, de tanta e tão boa. Inspirando-se em alguns trechos do conhecido e importante romance surrealista e modernista, Iara Rennó, nome destacado de uma nova vaga de ótimas cantoras e compositoras brasileiras, chamou ao projeto perto de sessenta músicos, todos eles (ou pelo menos uma boa parte deles) de inegável e reconhecido talento, para juntos edificarem uma obra de enorme interesse sonoro e literário. O resultado é soberbo, preocupando-se a artista em fazer um disco de abordagem musical crua e fina, muito precisa, utilizando sonoridades com forte apelo regional, mas também outras bem mais vanguardistas. Produzido pelo cada vez mais influente Moreno Veloso (é coisa de família, como bem sabemos), o disco tem participações de feras como Tom Zé, Arrigo Barnabé (o homem que no início dos anos 80 fez essa obra inclassificável chamada Clara Crocodilo) e Siba. Embora seja um álbum perpassado por alguma melancolia sonora, há nele boas doses de experimentalismo, e nisso se nota alguma aproximação ao texto de Mário de Andrade, em si mesmo um artefacto muito pouco convencional. Ambas as obras, livro e disco, têm um mesmo início: “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite.” A frase que se tornou icónica desde finais da segunda década do século passado não poderia, obviamente, deixar de estar presente neste trabalho da artista de Sampa.
Ficamos hoje por aqui, com estes dois bons punhados de livros e discos. Muitos outros poderiam fazer parte da nossa escolha, mas foram estes que vingaram. Voltaremos, muito provavelmente, a esta ideia, e dessa vez serão outros os autores escolhidos. Será sempre um prazer folhear, ouvindo, o que eles nos terão a dizer. Boas leituras! Boas escutas!