Estivemos à conversa com Nuno Saraiva, o responsável – através da Lusitanian Music, selo Mais Cinco – pela reedição da obra de José Afonso. Tudo girou à volta da boa-nova editorial.
Altamont: Qual é para ti o significado de seres o editor de grande parte da obra de um artista com a dimensão de José Afonso?
Nuno Saraiva: Primeiro, é uma sensação incrível. Quando fechámos o acordo de licenciamento com a família, assinámos o contrato, e acordei no dia seguinte a pensar «agora sou o editor do José Afonso», senti que treinei a vida inteira na música – a abrir editoras no Canadá, em Londres, a trabalhar um pouco na Suécia e depois em Portugal – para estar capacitado para esta enorme honra e responsabilidade.
Era o destino?
Não acredito muito no destino, o destino somos nós que o construímos. Acredito é que de todas as ofertas que a família tinha em cima da mesa, acabou por pesar essa experiência internacional, o nível de informação, o profissionalismo, a transparência de explicar como é que as coisas funcionam, como é que funciona a FNAC, como é que funciona o Spotify, como é que funciona a indústria. Voltei a Portugal em 2008, não havia uma associação de editoras independentes em Portugal: em 2012 fundámos a AMEI. Em 2014 fui co-fundador do Westway Lab em Guimarães, a primeira conferência profissional internacional de música em Portugal, onde convidámos oradores como o Peter Jenner – que foi manager do Syd Barrett, do Billy Bragg, do Mark Bolan. Portanto, o meu conhecimento de campo na indústria, tanto a nível nacional como internacional, de certa forma falou por si.
O facto de seres um editor independente também deve ter ajudado, imagino, por haver uma maior sintonia com o espírito do Zeca…
Isso pode ter tido algum peso na decisão mas pessoalmente não tenho nada contra as nossas parceiras multinacionais. Mas sim, demoraram tempo a decidir, houve com certeza uma ponderação de todos esses factores. E é uma honra trabalhar de forma próxima com o Pedro (Afonso), com a Lena (Afonso), com a Zélia (Afonso), com o (José) Santa-Bárbara. É um privilégio.
Qual é a tua relação pessoal e biográfica com a música do Zeca?
A partir dos 12 anos, fui para o Canadá. Lembro-me de ouvir José Afonso antes de ir para lá. O meu primeiro padrasto comprava vinil e ouvíamos discos em casa. Depois, quando fui para o Canadá, perdi um bocado esse contacto, embora viajasse frequentemente para Portugal. Mais tarde comecei a ouvir rock’n’roll. Quando o Alain Vachier, que trabalhou com o José Afonso, me apresentou à Zélia e ao Pedro, a primeira conversa que tive com a Zélia foi para esclarecer uma coisa de uma sincronização, porque eu sou publisher, sou editor autoral também, para além de ser editor fonográfico. Em inglês existem record labels e music publishers; no português brasileiro – muito mais correcto nesta terminologia – existem gravadoras e editoras. Gravadora é record label. Editora é music publisher. O que é que faz o music publisher? Trata da gestão do direito de autor, letras e músicas, trata das obras, enquanto que o produtor fonográfico – record label – trata dos discos, da música gravada. Eu faço as duas coisas mas sou principalmente music publisher. A relação pessoal começou com a família do Zeca, quando comecei a esclarecer esses pontos, conversa puxa conversa, e o Pedro disse que queriam reeditar a obra e se eu não queria apresentar uma proposta. Nessa altura mergulhei na obra. Primeiro fiz a proposta, comecei a ouvir os discos, fui ali a uma feira de discos usados na Gare do Oriente onde paguei trinta e cinco euros pelo Cantigas do Maio, em vinil. Comecei a ouvir os discos e a redescobrir: de algumas músicas lembrava-me, outras não conhecia. Foi um processo natural porque para além do rock’n’roll, sempre gostei de folk: Bob Dylan, Pete Seger, Neil Young, Old Jerusalem… E aqui estamos perante uma obra folk ímpar, que é excepcionalmente inovadora e que começa a misturar outras influências de outros ritmos e melodias, pega no folk tradicional e inventa uma nova linguagem poética mas com influências também de África, é uma coisa maravilhosa. Pensei: «como é que é possível isto não estar disponível e não estar nas plataformas digitais?» e aí revoltei-me. Disse ao Pedro, «não pode ser, considerem lá essa minha proposta, que realmente quero pegar nisto».
Portanto, batalhaste pela causa…
Sim. Fiz uma proposta do publishing e dos discos. Eles optaram para já por avançar com os discos e ainda estamos a falar também do publishing, porque quando se deixam direitos autorais inscritos numa mera sociedade de autores, que está talhada para fazer a gestão colectiva, há uma ausência de gestão individual das obras. A gestão colectiva são as avenças, passa na rádio a S.P.A. paga, passa na televisão a S.P.A. paga, de vez em quando lá vem uma coisa de uma sincronização, a S.P.A. não domina porque é gestão individual, não é colectiva, mas lá dá resposta com alguma demora dessas situações também. Portanto, os music publishers tratam da gestão individual das obras. Por exemplo, procuram realizadores de cinema para meter as obras nos filmes certos. Ainda há um vazio que espero que também fique resolvido a seu tempo.
Estando os masters originais perdidos, isso diminui a qualidade das novas masterizações? É possível reproduzir a qualidade das edições originais em vinil?
Essa era a minha preocupação. Mas a família tinha arquivos digitais a 24 bits de todos os discos, ou seja, tinham transferências das fitas, e quando ouvi os arquivos da família fiquei descansado, porque sabia que tínhamos bom material para trabalhar.
Muito próximos dos masters originais?
Melhores do que os masters originais, porque o digital não se deteriora. Há muitos masters em fita que se não forem bem guardados, preservados, sem humidade…
E em Portugal deve haver muita incúria, não?
Repara, primeiro havia e continua a haver uma reciclagem, reutilização de fitas, portanto é provável que muitas das fitas, se existirem, já não são as originais, são cópias de cópias. E as fitas de duas polegadas, onde foram gravados os discos em multi-pistas a partir do Cantigas do Maio, se calhar nunca ficaram sequer com esses masters multi-fita, ficaram só com as misturas.
Mesmo que se encontrassem essas masters provavelmente teriam uma qualidade inferior, então…
Iriam para um museu. Não seriam utilizáveis, de certeza.
Os novos masters ficam armazenados em fita ou formato digital?
Hoje em dia geralmente fica tudo armazenado em formato digital. No que respeita aos armazéns, dos arquivos das fitas, houve um grande incêndio em Los Angeles nos arquivos da Universal onde se perdeu imensa coisa, há 5 ou 6 anos, uma tragédia. E já tinha acontecido isso antes num armazém em Londres. O digital ajuda a preservar as fitas melhor do que as fitas.
E o próprio processo de masterização é mais analógico ou mais digital?
Se estivermos a masterizar para CD ou para o digital, o ideal é começar com um master digital de 24 bits, o CD tem uma qualidade de 16 bits, dois terços da qualidade que deveria ter. Se estamos a masterizar a partir de fita, ou a partir de um master de 24 bits para vinil, então deve ser uma masterização analógica.
Então, neste caso, como o vosso ponto de partida foi sempre o digital, toda a masterização foi digital?
Sim, mas com uma importante diferença, porque a instrução que demos ao Florian Siller, e que ele próprio mesmo sem instrução teria feito, foi o de pegar no master de 24 bits e começar a masterizar num processo analógico para o vinil. E no nosso caso, o som que se ouve no CD e também nas plataformas digitais, é uma declinação desse processo de masterização para o vinil e não um caminho paralelo no digital para a masterização digital, que é o mais comum hoje em dia. Portanto, optámos por fazer a masterização com ponto de partida para o LP e depois desse trabalho feito, as declinações em 24 bits para o digital, em 16 bits para o CD, foram feitas a partir desse.
Esse processo analógico dá mais calor à música?
Sim, mais calor, mais dinâmica e mais detalhe também. É por isso que aquele comentário do Rui Pato ao Nuno Galopim me deixou contente porque considero que foi uma missão cumprida.
Encontrou sons da sua guitarra que há muito não ouvia…
Provavelmente nos CD anteriores estava demasiado comprimido, o som demasiado maximizado, demasiado achatado, e não se ouvia aquela dinâmica.
Falaste do alemão Florian Ciller, o engenheiro de masterização, que tem um grande currículo, já trabalhou com o Pete Doherty, At the Drive In, The Mars Volta. Porque é tão conceituado? Quais são os seus atributos e especificidades?
Quando fechámos o contrato de licenciamento com a família disse ao Pedro e à Lena que tinha duas opções para masterizar para vinil, duas pessoas com quem já tinha trabalhado e que me sentia confortável que a qualidade estaria assegurada. Um deles é o John Golden na Califórnia, que é um masterizador que faz as coisas tão quentinhas, tão boas de ouvir que quase que me atrevo a dizer que se reconhece a qualidade da masterização do John Golden só pelo som. E o estúdio Sound Garden, que está inserido num grande estúdio analógico que é o Clouds Hill, e nós tínhamos no início de 2020 gravado o segundo álbum de Lusitanian Ghosts no Clouds Hill e masterizado pelo Florian. Portanto, já tinha uma relação e uma confiança total na qualidade.
Qual é a sua imagem de marca?
Os masterizadores não têm uma imagem de marca, ele tanto trabalha discos de jazz clássicos, discos da Deutsche Grammophon, discos de jazz com uma dinâmica muito aberta, como é também o caso da folk, ou trabalha coisas de rock. É a qualidade da clareza do som, de preservar a dinâmica e não ir atrás do volume. Nos anos 90, era ver quem é que gravava o CD mais loud. Para nós, é o contrário, é mesmo a dinâmica que interessa.
Algumas das gravações originais dos anos 60, estou a pensar no Cantares do Andarilho, e no Contos Velhos, Rumos Novos, por exemplo, não têm uma grande qualidade de som, os equipamentos não eram os melhores na altura. Isso constituiu um obstáculo à masterização?
Tivemos que corrigir alguns temas. Não foi alterar no sentido artístico, mas houve algumas correcções a nível de algumas faixas que não estavam ao nível de qualidade das outras. Isto aconteceu mais no Contos Velhos do que no Cantares, que foram curiosamente gravados no mesmo estúdio, no Estúdio Polysom, mas o Cantares ainda assim parece-me uma captação mais uniforme, em termos da qualidade, e o Contos Velhos varia mais de música para música. O Contos Velhos foi o desafio maior em termos da masterização.
No sentido contrário, existe o risco de polir em demasia a masterização, comprometendo-se alguma da pureza original?
Com esta abordagem, não. Por exemplo, aquilo que o Rui Pato disse, de ouvir coisas que já não ouvia há 30 anos, prende-se com essa abertura do som, de ir à descoberta da dinâmica, e portanto não estamos a adicionar nada que não esteja no original. Por outro lado, isto pode ser controverso, mas depois do Cantigas do Maio, nós vamos editar o Toupeira e o Venham Mais Cinco em LP a 45 rotações.
Isso confere mais qualidade?
Sim, dá mais qualidade ainda. A duração permite. Primeiro estranhei mas depois concordei com o Florian. Vamos ter de informar no design, vamos ter de explicar que é a 45 rotações.
A obra de José Afonso não chega a todos por igual. Barreiras como a geração, a ideologia, a língua e país dos ouvintes condiciona o seu alcance. É uma preocupação tua tentar derrubar estes obstáculos, para uma divulgação mais universal da sua obra?
É, sim, senhor! As plataformas digitais – incluindo singles digitais e playlists – resolvem a questão geracional. Agora a parte do português, já coloquei o Pedro e a Lena e a Zélia de sobreaviso, que é minha intenção encontrar os artistas e os letristas certos para traduzirem a obra para inglês e eventualmente outras línguas. Isto porquê? O Bowie cantou o “Space Oddity” em italiano e o “Heroes” em alemão. Os Beatles cantaram em alemão. A obra de Serge Gainsbourg, dificílima de traduzir, foi traduzida pelo Mick Harvey, muito bem traduzida, com os duplos sentidos quase todos no sítio. O Mick fez um excelente trabalho com aqueles dois primeiros discos, o Intoxicated Man e o Pink Elephants – tive a honra de trabalhar com o Mick Harvey quando ele foi apresentar esse concerto ao Primavera Sound em Barcelona, e falámos deste assunto. Harvey tem a noção que, sobretudo na Austrália, mas também em Inglaterra, as traduções do Serge Gainsbourg abriram a obra a pessoas que nunca tinham ligado muito porque era em francês e não falavam francês e não percebiam. O Gainsbourg teve esse considerável impulso nessa altura. E o José Afonso, porque não?
Estava aqui a lembrar-me que a Drag City editou o Carlos Paredes…
Sim, há um clip na net do Bonnie Prince Billy a cantar a “Grândola”! Fora da Drag City há também o Billy Bragg. Ainda não comecei a pensar nisso a sério, porque a missão principal é editar estes 11 discos, a masterização já é missão cumprida mas ainda falta o resto dos fabricos, a edição.
Na parte da promoção e divulgação é que ainda há muita coisa a fazer, não é?
Sim. Até porque houve atrasos no ano passado com os fabricos dos vinis, o CD saía a uma semana, o vinil saía um mês mais tarde…
Na nossa geração houve os Filhos da Madrugada Cantam José Afonso, um disco e um concerto importantes para passar o testemunho da geração dos meus pais para a minha geração. Pensariam em qualquer coisa desse género agora?
Sim, com certeza. Mas com uma curadoria que necessariamente envolveria a família. Não quero fazer nada que não seja bem discutido para que toda a gente esteja contente com a abordagem.
No final de 2022 está tudo editado?
Não, vamos até ao Fura Fura. O Fados de Coimbra fica à parte, não sabemos ainda o que fazer com esse disco. Porque esse disco é uma quebra no percurso artístico, que foi de certa forma encomendado pelo editor da altura. É uma carta fora do baralho e se calhar merece outro tipo de abordagem, que pode até incluir algumas faixas que a família também tem, anteriores ao Baladas e Canções.
Falámos das barreiras do alcance da música, da geração e língua, e falei também da questão da ideologia porque o Zeca Afonso sempre foi um homem de esquerda, engajado politicamente, humanista, e essa associação é lógica. Mas por outro lado, o génio em si não é de esquerda, não é de direita, é génio e ponto final. Essa questão de divulgar para além dos grilhões da ideologia também se coloca?
Sempre acreditei que o papel do artista na sociedade não é ser um mero entertainer. Cresci com o Elvis, até o Elvis que era entertainer e não escrevia músicas, até ele se preocupou com a situação social na América, gravando o “In the Ghetto” e o “If I Can Dream”, contra o conselho do manager dele. Acredito que o papel do artista é de intervenção, deve haver uma utilidade pública, humanista e positiva em qualquer obra de arte. Sei que isso não é assim, sobretudo na música, é uma entertainment industry, music business. Eu acho que é importante voltar a ter esse exemplo, para que as novas gerações de artistas possam pensar que a música pode ser tudo isto. A música pode, e deve, ser tudo isto. E não é à toa que um artista como o Dylan continua a dar cartas, no sentido de editar discos que comentam coisas que se passam – podem comentar ainda a morte do Kennedy mas também podem comentar momentos actuais políticos. As coisas são, portanto, indissociáveis, acredito que é importante dar esse exemplo. Na minha forma humilde, fazemos o mesmo com Lusitanian Ghosts, e com certeza que há outros artistas nos momentos actuais que se preocupam com estas coisas, e que a sua arte também comenta o que se passa, mas provavelmente são cada vez menos. Há cada vez mais entertainers.
O Zeca é indissociável do seu posicionamento humanista e não deve ser separado, portanto…
Humanista, sim! E não é uma coisa específica a uma cor política, e isso é importante. É importante perceber que um ser humano pode escrever o que escreve, as poesias, a contestação, tudo isso, de acordo com o seu radar humanista, sem ter que estar vinculado a uma ideologia partidária e isso é muito importante.
O próximo disco que vai sair, a 22 de Abril, será o Cantigas do Maio, para muitos considerado o melhor disco de música popular portuguesa de sempre. É um disco muito bem gravado, num estúdio muito bom em França e com a direcção musical muito sofisticada do José Mário Branco. Sentes uma maior responsabilidade por todo esse contexto?
Não, de todo. Sinto a mesma responsabilidade por todos os álbuns. Mas é óbvio que há muita gente que partilha dessa tua opinião. Agora, quando olhamos para o arco, e mais uma vez deixo de fora o Fados de Coimbra porque é outra coisa, mas quando olho do Cantares até ao Fura Fura, é muito difícil hierarquizar. Quando o Florian começou o trabalho de masterização, disse-me uma coisa que achei brilhante: “não vou ouvir todos os discos, vou ouvir um de cada vez, à medida que trabalho neles”. Achei isso fantástico. E depois recebi e-mails dele «epá, ouvi agora o Cantigas do Maio, isto dá um salto». O primeiro e-mail desses que eu recebi foi quando ele chegou ao Traz Outro Amigo também, porque há aí já uma clara diferença. Depois, a mesma coisa com o Cantigas do Maio, e depois começou a cena da fusão com outras influências. O Coro dos Tribunais é o primeiro pós-25 de Abril. Quando eu e o Pedro, e a Lena também, olhámos para este conjunto de álbuns existe um primeiro ciclo editorial, que é o que já foi publicado; existe do Cantigas ao Venham Mais Cinco; e depois existem estes quatro pós-25 de Abril. Nós optámos por ter estes ciclos. Portanto estes três discos saem ainda antes do Verão e depois os outros quatro no Outono até ao final do ano.
Estas edições não têm nenhum livrete a fazer uma contextualização. Isto foi uma opção vossa e vai ser transversal a toda a reedição?
Sim, foi uma opção para preservar ao máximo o intuito original do Santa Bárbara e do José Afonso, com o packaging original dos discos. Não quer dizer que ao chegar ao final do ciclo não se edite um boxset ou algum outro formato que possa ter esse tipo de contributo.